terça-feira, 30 de março de 2010

A Sombra

Eis a divisão da poesia:
É uma coisa à noite, é outra de dia.
Não se vê, não se acha, sumiu nas esquinas.
Reapareceu.
Em outras cinzas se converteu.
Essa é sua categoria,
É uma coisa à noite, é outra de dia.
Tira da mira certas conclusões
e cai fundo no poço de suas águas frias.
Confunde o caminho de quem a definiu.
Chegou, correu, até sua sombra sumiu.
Dispersa nas palhas de seus vocábulos
a gente que pensa ser ela um padrão.
Ela é como a noite que chega
trevas escuras, estrelas clarão.
Não é como o dia ou a noite que caiu,
é um bem que afaga e que depois sumiu.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Conceito Coerente




Há quem diga:
“Quero dinheiro, fama, poder, mulheres”...
Penso que pedem quase que o inferno completo.
Palavra dura essa, que lembra fogo e maldição...
Mas não são esses os objetos que por ele, muitos se queimarão?
Exagero?

Claro, não há pecado em se ter dinheiro,
mas em amá-lo e torná-lo o primeiro...
Fama para acariciar o ego, o orgulho pessoal,
e coisas do tipo “olhe como sou lindo”,
nunca conduzem ao lugar esperado.
Nesses casos, as pessoas costumam trombar com a solidão.

O poder é perigoso a quem não sabe onde está o coração...
E quanto às mulheres, concordo com o Vinícius...
“O homem deverá ser bem homem para ter somente uma”.
Há ainda no mundo coisas que fazem bem,
que trazem prazer e uma incomparável sensação.
Como uma boa limonada...

Zé do Lixo




Imagine um senhor robusto de meia estatura, mais velho que jovem, com cabelos apenas aos lados de uma careca central, e de chapéu na cabeça para tapá-la. Ele usa um bigode mediano, insuficiente para esconder completamente os lábios, muitas vezes lambuzados de molho de macarrão, preparado pela esposa.
Seu nome é Davino. Davino Scalize. Um homem sério, com muitos filhos, e de um amor incomensurável por seus fiéis amigos caninos, que pela vida cuidou com muito carinho. Eles não eram sua única paixão existencial. Caminhoneiro desde a juventude, apreciava suas viagens de caminhão, a trabalho é claro. Parece que entre as estradas do Brasil, ele seguia piamente aquele velho ditado, “pra um bom viajante nenhum caminho é distante”. Gostava de viver assim, desbravando caminhos, mergulhando em muitos horizontes.

Este homem realmente era diferente. Chegava a ser meio engraçado. Sua aridez de espírito e severidade nas atitudes, não representava sinônimos de maldade. Era divertido ver alguém tão sério e rígido e fechado, quando se lambuzava inteiro, agora por uma manga madura. E melancia então? Chamava-a de “bola d’água”. E era o único ser humano na face dessa terra que conseguia acabar em pouco tempo com uma “bola d’água”, inteira e sozinho...
Parece que ele entendeu que o os sonhos se constroem. Deve ser por isso que ele, com a ajuda de seu saudoso pai, construíram com os próprios punhos sua casa onde hoje, mora sua família. E depois de acabada, fez com o dedo uma inscrição memorável, com as letras D e S, datando em cima o ano de 1954. Você conhece alguém que para obter água fresca, fez um poço profundo no próprio quintal? Ele fez.
O quintal da casa dele era um tanto grande. Depositava ali algumas de suas bugigangas, perto da jabuticabeira, que costumava receber diariamente ao seu lado a presença da velha Variante vermelha do velho. O fogão à lenha ficava mais ao fundo, perto de uma parede que sustentava em alguns pregos, uns tachos bem largos que a Zazá usava para preparar doce de abóbora e sabão.

O quarto dele é que era um verdadeiro museu. Esse homem era antigo demais. E gostava tanto de ser assim que o seu silêncio revelava isso, quando sozinho deitado em sua cama descansava com o olhar por vezes preso ao teto, às vezes na cachorra Chica, sua grande companheira.
Esse olhar era uma espécie de lâmpada. Uma vista velha, porém lúcida, que o remetia acordado aos seus pensamentos, coisas que até hoje não consegui decifrar. Ele não dormia com a esposa. Esse quarto era separado do dela. Ao lado de sua cama havia uma mesa, que suportava um radinho que vivia tocando modas de viola, e narrando jogos do XV de Jahu.
Em cima de seu guarda- roupas havia uma mala. Aquilo sim era uma velharia para mim. Ela era um mistério só. Depois de muito tempo apenas, foi que descobri coisas que ele guardava lá. Coisas como retratos, moedas antigas, documentos do começo do século passado, e outras mais. Em uma das paredes, um belo desenho de uma velha “Maria Fumaça” ao lado da estação, revelava seu grande outro amor. Os trens. Vários daqueles retratos que citei eram justamente dele, por vezes, ao lado ou comandando uma dessas máquinas locomotivas, que já são raras nos dias de hoje. Mas nos dias de Davino não.

Aliás, o apelido dele era Zé do lixo. Carinhosamente (ou nem tanto), outorgado pelos velhos amigos de trabalho. Acredita-se que algum malandro engraçadinho, colocou-lhe esse inesquecível codinome, simplesmente por ser notória sua mania de vasculhar no lixo que encontrava por ocasiões, alguma coisa que lhe fosse útil. O caso é que seu último trabalho, antes da sonhada aposentadoria, era de caminhoneiro da prefeitura, justamente no caminhão de lixo. Ou seja, quando ele tinha oportunidade, conseguia encontrar pelos lixos da cidade, coisas que considerava boas, e que ao seu ver não deveriam estar ali. Pegava tantas coisas inúteis, que iam de peças de motores de veículos até martelos sem cabo, enfim, isto fazia parte dele. E consequentemente tudo isso fez com que Zazá desistisse de uma certa organização nas coisas do Zé. Havia na verdade, um outro quartinho somente para essas suas bugigangas, e confesso que entrar ali escondido às vezes, era a diversão minha e de meu irmão. Tudo bem que isso nos custava muitas vezes uns “cróques” na cabeça, mas não ficávamos nunca com raiva do velho.
Não vou encontrar alguém como ele. Escondia dinheiro embaixo do colchão e em algumas latas, para realizar uma espécie de “economia”, e diversas foram às vezes que perdeu boas quantias, que se estragavam, enquanto ele se esquecia que tinha dinheiro guardado. E na copa do mundo? Em 1994, pendurou uma grande bandeira que ele mesmo preparara, para todos verem no telhado de sua casa. Como bom italiano, as cores vermelha, branca e verde, tremulavam ao vento, exibindo sem vergonha alguma, a palavra: “Italha”.
Do contra, resmungão, bravo, sério, mas honesto e trabalhador, esse era o Zé do lixo. Coitado do prefeito que era mal dito por ele vez por outra. Talvez o segundo mais xingado fosse o Faustão.

Como disse, ele não era um homem mal, mas alguns tristes incidentes aconteceram, que deixaram algumas pessoas muito tristes e magoadas com o velho, e que passaram a crer que ele era malvado sim.
Quando a Zazá começou a freqüentar a igreja adventista, ele não gostou muito não. E dizia que a igreja não prestava para nada, e maldizia o pastor, que sequer conhecia. Tudo começou quando um vendedor de livros religiosos visitou-lhes a residência, num dia em que o Zé não estava. A Zazá recebeu o rapaz com alegria, e a partir dessa visita ela veio a conhecer as verdades maravilhosas que até hoje ama e segue.
Quando as idas dela para a igreja tornaram-se mais intensas, o Zé começou a agredi-la além das palavras, e partiu para a agressão física. Como os filhos eram muito pequenos, o máximo que conseguiam fazer para proteger a mulher, era juntar-se todos em volta dela, para que as cordadas não pegassem nela, assim todos dividiam a mesma dor. Por esses dias, ele ainda não era tão velho, esse caso deu-se ainda em meia juventude do casal.
E ele prosseguia em suas viagens, em seu amor pelos cachorros, em seus passeios ás tardes, e em sua paquera nas ruas pelas mocinhas...
Enquanto isso, Isabel perseverava em seguir os caminhos de Jesus, que um dia aquele rapaz, como um enviado dos céus, lhe apresentara. Às vezes, ia para a igreja às escondidas, com medo de apanhar. Quando certa vez o Zé descobrira que ela estava lá, ao chegar em casa, ele já tinha um reio nas mãos para recompensá-la. E nesse dia, o velho chegou ao ponto de queimar-lhe a bíblia.
A despeito de tudo isso, Isabel confiava em Deus, e nunca deixou de orar pelo marido cruel. Passou muitos anos sem ir à igreja querida, mas nunca abandonou seus princípios, pois Deus era com ela.

Muitos anos se passaram quando o Zé já era aposentado e bem velho. Os filhos eram pais, e até seus netos eram grandes, chegou a ter uma linda dupla de bisnetos gêmeos. Foi quando pela velhice e por uma complicação de saúde, ele ficou muito doente, num leito de dor. E agora, a mesma Isabel, a velha Zazá, cuidava dele como quem cuida de um bebê indefeso.

Deus já havia tocado há uns dois anos o meu coração. E seguindo o exemplo de minha avó, entreguei minha vida ao Senhor. Mas e o Zé do lixo? Deveria morrer assim, em nossa mente condenado ao inferno, por ter feito tanta maldade a velha, pelo adultério, e por outras coisas? Foi quando resolvi unir-me a vovó e orar por ele, quem sabe fazer alguma coisa mais. Acredito que foi o Espírito Santo de Deus que me incomodou para isso. Após poucos dias de oração, entrei no quarto do velho. Ele estava lá, adoentado, fraco e aparentemente entregue à morte, pois o hospital o despedira afirmando que ele “melhoraria naturalmente”. Recordo-me que a dúvida atrapalhou-me o pensamento: Como poderia este homem alcançar a salvação nessas circunstâncias? Como, se durante a vida inteira ele amaldiçoou tudo o que ter que ver com as coisas de Deus? Como? Realmente o acusador é terrível, mas Deus prova Sua misericórdia.
Lembro-me que cheguei perguntando de suas viagens. Falei de algo que ele gostava para quem sabe entrar num assunto mais sério, e ser aceito. Com a voz fraca, em umas três frases curtas, disse-me que lhe foi incrível quando viajou milhares de quilômetros de caminhão até Belém do Pará:
- É vô, o senhor é meu herói, que aventureiro!
Ele sorriu.
- Vô, o vô gostaria de ir para o céu?
Uma lágrima despontou-lhe nos velhos olhos meio esverdeados, e respondeu com um leve aceno com a cabeça que sim.
Eu já agradecia a Deus em meu coração, enquanto o desafiei afetuosamente:
- Então, o vô quer repetir com sinceridade uma oração que eu vou dizer? Ah, e o vô só repete comigo se acreditar e aceitar no coração isso que eu vou dizer, tudo bem?
Encostei-me bem ao seu lado, peguei-lhe nas mãos, pedi que fechasse os olhos e oramos. Nunca ninguém havia visto aquele homem orar. O que se seguiu foi uma oração de confissão, de pedido de perdão, de aceitação a Jesus, e assim o Zé confessou. Confessou que aceitava para sua vida, Deus e Sua misericórdia pelo sacrifício de Jesus. Em seguida pedi a ele para que repetisse comigo, algo que ele de alguma maneira já havia ouvido:
- Vô, repete assim; “Pai nosso que estás nos céus”...
E com a voz muito fraca, mas crente, ele repetiu:
- “Pai nosso que estás nos céus...santificado seja o Teu nome...perdoe as nossas dívidas”...
E foi assim. Um milagre!
Recordei-me então de um verso que sequer sabia onde estava, mas estava...Aquele que diz que, se uma pessoa passar toda a vida servindo a Deus, e no último momento abandoná-lo, essa não terá a salvação. E que aquela que viver toda a vida sem servir a Deus, mas que o aceitar nos últimos momentos de sua vida, esta terá a salvação...
Dei-lhe um beijo na testa meio suada. Talvez o primeiro beijo que dei em meu avô...
Ele me abraçou como pôde, e confesso que seu rosto demonstrava-se outro, como quem verdadeiramente encontrara-se com o Senhor. Ele me agradeceu, e eu não pude conter as mais felizes lágrimas que já derramei. Saí do quarto com a bíblia que havia levado comigo, jubiloso e agradecido a Deus.

Assombra-me esse jeito indescritível de Deus de salvar. Sim. Gosto de pensar que em meio a tantas palavras que gosto, um certo Zé do lixo, torcedor da seleção da “Italha”, ensinou-me sem agendar comigo aula alguma. Intrigante e engraçado que Deus fez com o Zé, coisas de Zé do lixo mesmo; reaproveitando coisas que aparentemente não tinham mais valor algum!
Poucos dias depois ele adormeceu, deixando-nos com muita saudade. Mas realmente por seu testemunho, muito aprendi, nessa aula agendada por Deus. Concedendo-me assim muita alegria de saber, que no bendito dia da ressurreição, quando Jesus voltar, eu poderei reencontrar o meu avô.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Nosso amor em 1877




Seria num jardim
onde lhe colhesse uma rosa.
E lhe declarasse amada amorosa
todo o bem que faz pra mim.

Seria eu um galã às antigas,
meio apaixonado desastrado,
que lhe suspirasse por minha vida,
um poeminha do bolso retirado...

Uma linda dama,
você por certo com toda sua graça
de presente me daria um sorriso
que de profundo, eu o levaria para casa,
no travesseiro à noite ver de novo ele comigo...

E nessa mesma noite
antes de lhe deixar em sua casa, minha dama,
retiraria meu chapéu num gesto cavaleiro,
e diria baixinho ao seu ouvido
o que já não seria nenhum segredo:
Pros seus pais não saberem que eu estive ali aquela hora:
- Minha menina, eu amo você!

O que direi sempre, em qualquer época...
Em 1877 seria como hoje é:
- Minha menina, eu amo você!

quarta-feira, 24 de março de 2010

Explicação




Por favor,
não me pedis a explicar um poema.
Sejas-me benfeitor,
pois dos anjos são, não dos humanos, esse esquema...
Ouvis?
Daqueles que batem asas por entre todos os azuis.
Que tocam harpas e trombetas.
Que escovam em sua santidade o buraco das estrelas.
São deles o esquema, e eu não,
eu não sou um anjo...

Os Dois Anjos




Dois anjos conversavam por umas frestas imensamente azuladas no vasto céu de anil, quando umidamente uma leve chuva de primavera começava a cair das maiores nuvens. Como vagamente compreendemos, entre os três céus existentes nesse magnífico universo de Deus, eles se achavam exatamente em um canto da extremidade do segundo, que por uma medida angelical, estava distante do terceiro, cerca de setenta e sete asas abertas. Isso corresponde a uma pequena distância para eles; se encontravam praticamente nos quintais eternos do criador, enquanto tal distância representa um caminho um tanto maior para os humanos.
As poeiras cósmicas obviamente lhes são mais conhecidas. Já puderam percorrer longos trajetos aos mundos desconhecidos, e agora riam por saber ter conhecido mais outras tantas belezas.
Sempre as contemplam. Não possuíam muitas palavras para traduzir o tamanho do infinito, afinal, é infinito. E não sabiam retratar ainda mais, a grandeza Daquele que projetara tudo aquilo. E por tal silêncio, santo e reconhecedor, apenas diziam no coração em uma alegria: Santo, Santo, Santo é o Senhor.
E o que mais é motivo de uma intrigante observação desses seres, é que quanto mais olham para aquilo que fizera seu Senhor, mais ainda O amam; e quanto mais meditam em Seu amor, mais ainda repetem essa eterna canção: Santo, Santo, Santo é o Senhor. Imagine esses dois que já pisaram o solo da lua, sem que houvesse como houve para os humanos, uma enorme descoberta e conquista. Pisaram lá. E a sua bandeira era simplesmente tremulada ao peito, em um amor real por aquele que moldara aquele satélite. Ficaram felizes por conhecer mais um lugar, sim, houve a descoberta, mas banhada a um louvor ao Criador, não em um orgulho desnorteado e egoísta.
É por isso que eles sentem uma espécie de pena e compaixão fraterna por nós. Vêem esses homens lutando por coisas e engrandecendo outras, com propósitos completamente descompassados. E sabem ao fundo que, não passa isso de ser, a continuação pela história das conseqüências maléficas do pecado.
Falavam disso quando se assentaram para um repouso, nos anéis de Saturno. Como eles nos queriam ajudar! Abrir-nos os olhos, pregar o evangelho, soprar amor; mas pelas razões existentes, não podem realizar por excelência certas coisas que queriam. Mas voltando ao azul em que se encontravam, tinham palavras impronunciáveis a dizer. Sabe lá nas sagradas escrituras, em Coríntios, “olhos nenhum viram, e ouvidos nenhum ouviram, e jamais passou pela entendimento do homem, aquilo que Deus preparou para aqueles que O amam”? É disso que estou falando. Palavras indizíveis, inefáveis. Eles as contavam em uma eterna brisa de santidade e renovação, pelas contínuas, não digo diárias, surpresas que lhes faz o seu Senhor.
Continuas, pois os intentos celestes sempre estiveram, desde as longínquas e temporais estações, exatamente fora do tempo, das horas, das marcações todas. O que se diz é que lá no céu não existem relógios, calendários, ampulhetas, ou qualquer que seja algum aparato de localização da linha do tempo. E tudo isso quer dizer que o próprio tempo, é Deus quem organiza, e possui todas as épocas, dos mundos, de tudo, em séculos e segundos, nas palmas de Suas mãos, pois dele, também é Senhor.
E por essa onisciência divina, magnânima e confortadora, mais uma vez em tom reverente e afável, eles continuavam: Santo, Santo, Santo é o Senhor!
-Como Deus sabe e possui todos os sonhos desses Seus filhos nas mãos, e como Ele trabalha com esse amor incompreensível a fim de abençoá-los!- Dizia um deles, ao que o outro respondeu:
-Sim, e como Ele quer lhes ensinar o amor...
No instante desse diálogo, umas antífonas maravilhosas derramaram-se do terceiro céu pelas fretas azuladas, convidando-os a voltar para louvar ao Senhor, junto com seus outros irmãos...
-Vamos, é a hora...
-Sim vamos. Continuemos de lá a interceder por eles, já que somos alunos e filhos do amor também. Desse amor que não se compra, não se vende, não se rouba, mas que é dado de graça, ternamente, em um olhar...

Um Menino nos Nasceu




Um recado luminoso cortou o céu nessa noite. Um bilhete em forma de estrela conduziu os magos a um lugar distante. Humanamente pobre, riquíssimo em significado. As palavras não possuem capacidade de traduzir o que aconteceu ali, naquela noite.
Não pôde existir resistência, todo esforço era pouco para poder encontrá-lo.
Hoje, tanto tempo se passou, e sinto algo em mim que me religa diretamente aquele acontecimento. Tento imaginar como foi aquela viagem dos magos. Descrevê-la, seria talvez uma forma de ocultar fatos indescritíveis, melhor deixá-los no segredo do coração. O que posso dizer, é que uma estrela brilhou...
Os olhares não puderam se desviar daquela faísca no céu, a lembrá-los do menino.
Ele é também hoje, a razão dessa minha viagem. Deixei o ocidente e fui pra Belém vê-lo nascer. Mas nesse lugar? Entre animais em uma estrebaria, na plenitude dos tempos. O mistério dos mistérios me faz ainda amar-te mais.
O sorriso de sua mãe tendo-o ao colo do peito. Ternamente amando-o no olhar, como seu cuidadoso pai, me dizem que a salvação foi um dia, uma pequena criatura indefesa. Indefesa? Se ele é quem nos veio defender?
Diferenças. Entre significados e estrelas, continentes e modernidade que ajudam o entendimento a captar o verdadeiro, o sentido, a chama que daquela noite não se apagou.
Não é dezembro ainda. Dessa vez, parece que o natal chegou antes do tempo. Será que agora eu é que estou pleno, ou outra estrela como aquela me conduziu num sonho?
Esse tempo vive. Misteriosamente não passa, renova-se no coração de quem quer acompanhar o nascimento de Deus aqui.
Desde menino aprendi a amar o natal, e me alegrar com essa época. Às vezes penso o que traz essa presente paz, esse toque de eternidade, essa serena felicidade nesses dias.
Seria a chegada do bebê, a Sua presença? Não poderia o natal não ter um fim e estender-se a todas as épocas?
Assim ele nos faria sempre sonhar, olhar estrelas, e saber nelas um convite. Viver intensamente um constante nascimento, um parto sem dor. Teríamos uma inconsumível saudade, uma cantata de natal em que os anjos junto conosco celebrariam, uma história eterna e inigualável história de amor.

Água e Vinho




Enquanto as horas passam
e as estações da vida me abraçam,
o sentido daquilo que sou
comigo vem se encontrar.

Ás vezes sei quem sou,
às vezes preciso me procurar.
Quando achei que me perdi, meu coração ganhou,
no dia em que vieste me transformar.

Chegaste com a doce intenção,
mas sem o mistério me revelar.
E quando me dei por conta sem palavra ou inquietação,

os olhos da alma viram, mas a boca dela se calou.
E num gesto de simplicidade e aceitação,
ternamente, meu novo sentido em seus braços descansou.

A Teoria de Francisco




Recordo-me de você. Repetia a palavra “presente” após chamar por meu nome. Depois então que descobristes que era irmão do Pereira; foi como as nuvens que dividem um mesmo canto do céu. Familiares e cheias de formas, belas e intrigantes. Chamar-me de Pereira era para mim uma amigável responsabilidade que me davas, uma maneira peculiar de tua alma a me dar força, sem que eu percebesse isso.
Suas brincadeiras, seu jeito sério, bravo ás vezes, eram a tradução do seu íntimo querer, que o espaço vazio na mente de seus alunos fosse preenchido por conhecimento. Disciplina e aprendizado eram as marcas que registravas em nós, sempre com uma boa dose de humor; aquele que vem por se sentir feliz naquilo que se sabe fazer. E fazias com mestria, como quem foge do tempo pelas vias da gramática.
Ajudaste-me a gostar dos caminhos das palavras. E em meio a verbos, figuras de linguagem e orações, muito aprendi contigo. E hoje, um capítulo do que fostes se registra em mim. Claramente apenas um pedaço.
Conjugaste com alegria o verbo nascer, quando dividiu conosco sua felicidade. A esposa estava grávida, mais uma vez, outra menina! Deveria ser professora ...
Esse era o seu diferencial, tão importante. Partilhar o coração ajudava a compreender a matéria. Os lápis escreviam mais que palavras, as borrachas apagavam mais que erros de escrita.
Recordo-me de sua alegria em descobrir depois de alguns anos, que eu iria cursar o mesmo trajeto que percorreste. E o melhor, voltarias a ser meu professor em apenas quatro meses. É, eu já havia crescido mais, não era mais aquele garoto do primeiro colegial, a faculdade me sorria, e olha quem ali eu reencontraria...
Recordo-me também de sua apreensão, pela notícia de que talvez eu deixaria a faculdade. Lembro-me daquele nosso encontro casual no corredor, quando me disse:
- Não desista, você já é um vencedor!
Essa foi a sua simples e extraordinária teoria. A amizade.
É verdade, muito aprendei com você. E acredito que até hoje não saberia o que é um paradoxo se não me explicasses com seu precioso afinco. E hoje eu sei, graças a você.
Sei também, e penso que foi um grande paradoxo a sua repentina partida. Sim meu amigo, essa vida é uma constante de vírgulas, pontos finais, pontos de exclamação, interrogação e reticências...
Ainda estou na sala de aula. Cursando justamente o ano letivo em que você deveria ser meu professor. Somos assim, como a neblina que surge e logo se dissipa. Sei que não podes me ouvir de onde quer que seja, mas guardo no coração essa sua recordação. Tenho ainda saudade, quando me lembro de você, a cada nova palavra que descubro seu significado...

Uma Estrela e uma Saudade




Uma estrela e uma saudade



Hoje havia no céu uma estrela solitária. Estranho, havia outros milhões delas. Mas ali estava ela sem saber, servindo –se de inspiração aos poetas e luz ao coração dos apaixonados. Nem mesmo a lua pode desviar-me a atenção, embora cheia se insinuasse com um cheiro de mel. Embora fizesse parte do conjunto que formava a noite fria e calculista, parecia-se isolada, como quem quer o céu só para si. Apesar de bela, demonstrava-se triste, como se toda ela fosse uma enorme gota de lágrima esperando alguma coisa, alguém. Brilhava intensamente, ingênua e misteriosa.
Sabe-se lá de onde ela caiu, assim convidativa, á beira do grande negro vazio chamado universo. Donde desprendeu-se? Quem a despediu? O que lhe trazia tristeza nos olhos?
Parecia-me que sua calamidade maior era tudo ter, mas nada querer. Ter o brilho e não querê-lo, era uma ironia, misto de ansiedade e busca. Uma cadente passara rápida, rasgando o nada com fogo e luz, e nada disso a despertara. Estava silente, despretenciosa e timidamente calada.
O tempo parecia-lhe inexistente, o frio confidente, o silêncio intrínseco. As nuvens tornaram-se passageiras de primeira mão, viajantes da umidade e ela do infinito, sem querer a companhia daquelas que dividem a mesma imensidão.
Porque poeira cósmica te indignas com tudo em derredor?
E a noite ainda derramava-se. E a cada segundo a aventura ficava mais intensa, e demorada e incompreensível.
A sinfonia da noite não passava, inquietante no silêncio, a música que a estrela mais queria ouvir.
O grande buraco negro se fez profundo, e ela não queria saber seu tamanho.
O relógio de plutão desenhou-se no céu, e a estrela não queria saber que horas eram. Queria ainda o sono estelar que a levaria ao eterno esquecimento.
Acordei de meu sono recostado á janela, com pelo menos a consciência que estrelas não pensam, nem se preocupam com horários. Olhei pra mim, minha vida, bateu-me uma saudade, forte, mas não localizada, sem saber do que ao certo. Uma coisa parecida com uma certeza me veio, e foi a de não querer ser tão semelhante a uma estrela.

Colírio




Observações estúpidas...
Entupiu-se o mundo delas.
Eu quero a palavra boa.
Como aquela jabuticaba,
chupada no pé a tardezinha, á toa...
É o que imaginava,
quando veio de outrem mais uma; meu Deus...
- Lázaro, porque você é assim, pára de tremer!
- Esse é meu jeito, meu bem...
O mundo deve ter virado um sonoro latão de lixo.
E eu...?
Devo ter os olhos furados.
Como não havia visto em Lázaro
esse alguém tão bondoso, extraordinário?
Perdoe-me amigo,
entre todas as minhas misérias,
minha mania impaciente e chata de olhar
com olhos tão errados e humanos...

Resumo

O desfecho é sempre um começo.
Esse começo pode ser eterno em uma escolha.
Pode não ser hoje, há de ser no ultimo dia.
Esse tempo que se inicia de um susto,
foi chuva em tarde triste de um enterro.
Pode ser o fruto recolhido de maduro.
Quem é que sabe? Quem é que fica?
Quem é que vai? O que tudo implica?
São as vértebras do corpo que ressurgirá...
E quase cheguei a concordar com Sócrates.
É que uma coisa eu sei que sei...
Que a flor pode perder a sua cor e murchar,
mas Deus é quem sempre vai saber...

Para a Velha ao Lado




Ela mora sozinha, parece triste.
Mas uns risos isolados em instantes inesperados,
põem sua agulha no novelo, e a quem ouve, põe dúvidas.
A casa mal rebocada pede o velho que deve ter ido pelos anos.
Dele ali restaram apenas o cachimbo, o chapéu, a saudade do cavalo,
e uma identidade velada num bule de café.
Era assim, o mesmo ritual na manhã e na tarde...
Ela o recebia com os olhos de moça dos anos passados.
Por entre um portãozinho e umas flores de jardim,
hoje ela ainda o leva na saudade.
Refletindo-o ali, nas vidraças dos mesmos olhos...

O Poeta Pirata




Lançou às águas do mar suas palavras.
Encharcadas letras de puro desvario.
Solidão.
Desalentos, na cara do oceano, pronunciadas.
Um quase bandido,
esperando no porto da vida, seu último navio...

A Pata da Cadela




A Pata da Cadela

Um certo mendigo da rua dos trevos, presenciou o pobre animalzinho ser atropelado por um maluco numa motoca. O desafortunado ordinário sequer olhou para traz, acelerou o irritante motor e sumiu, por uma avenida esburacada.
O Zé Estopa Furada, como era conhecido, cuidou das chagas da cadelinha, estacando o sangramento com os trapos de sua camisa, que era estampada com uma propaganda eleitoral a favor de um vereador, que dizia em umas letras tortas:
“Vote nº190 João da Lambreta, Seja humano e não entre pelo cano!”
O Zé nem sabia que possivelmente vestia a camisa do candidato cafageste. O fato é que a ironia nos dias modernos é um tanto presente. O que se sabe é que era ele sim o agressor, se involuntário, fato não justificador a ser omisso. E foi eleito por míseros 5 ou 6 votos. Mas a cadelinha não morreu. Vive hoje contente dia e noite, com o seu novo dono, o Zé Estopa.
Esse homem sujo e encardido, de unhas compridas, sem trabalho, casa ou mulher, foi uma espécie de bom samaritano. Ele que precisava de alguém que lhe amparasse, foi o que as pessoas costumam chamar, “anjo da guarda”. E o foi de uma cadelinha, talvez não tão suja quanto ele. A questão é que muitos poderiam aprender com ele, e quem sabe pedirem limpeza por dentro, para serem tão limpos interiormente como é esse miserável.
Ele a batizou de Noivinha.

terça-feira, 23 de março de 2010

A Impotência Humana




Segura firme a saudade.
Logo vais vê-la...
Isso é como pedir: Segura a castidade
do brilho daquela estrela...
Mira ela,
Como fiz naquela noite junto dela.

Pergunta




Seria exagero meu dizer-te que te quero para toda a vida?
Seria um desatino falar-lhe de eternidade, de casamento,
de que nunca vou querer outra alem de ti?
O que me pensarias se te chegasse com menos de um mês e te dissesse:
- Quero-te com toda a inocência dos olhos de uma criança,
com todo o fogo do ser de quem ama,
com toda a força da minha alma,
como Deus nos deu a vida.
Amo-te e sei que vou amar-te sempre...
Quero seu coração, os seus olhos, tudo aquilo que belissimamente, representa você!
Quer se casar comigo?
Tal como azul é o céu e duras são as pedras,
sei que de duas, uma resposta terias...
Sinto e sonho, que seria aquela mais azulada que ele,
envolta por uma linda canção de amor...sim!
Enquanto isso, eu vou contigo,
meio homem, meio menino,
meio coragem, meio tímido, porém, em ambas aparências minhas,
meu coração é o mesmo a repetir-lhe:
-Quero-te, amo-te...
E enquanto não lhe pergunto e me não respondes,
faço-lhe versos, sonho contigo e lhe trago flores...

Distração

O que seria a distração
senão uma bolha descompassada da atenção?
O pensamento que dispensou a lógica da vida...
Talvez a falta de pronúncia à declaração.
Já nem jaz em questão filosófica,
tornou-se anatomia transcendente.
Coisa de quem tem carne e osso,
corpo, alma, coração, registros da mente.
Simples respiração, jeito de ser gente.
Questão que me fez ouvir de Lázaro,
um grande elogio inesperado...
- Você é o rapaz mais inteligente que conheço...
Mas tão distraído...!
Não sei se ficava por essa palavra, mais feliz ou contrariado.
Houve silêncio enquanto ele pensava
que o assunto havia acabado...
Continuou em minha reflexão.
Os distraídos possuem assim, como muitos,
umas desculpas...
Obviamente não diria a Lázaro, mas se ele soubesse...
Corre o mundo aqui dentro num segundo.
Penso feito vaga-lume que também gosta de azul.
Passeia essa moça por desfile em mim.
Cada segundo...
E sonho, sonho com o amanhã, e sonho...
- Ora, vive no mundo da lua rapaz...!?!
- Oi Lázaro, disse alguma coisa...?

O Vôo




A tentação de versos completos atingiu-me.
A ponto de enganar-me que todos possíveis,
no mundo inteiro,
já haviam sido rabiscados.
Mas foi num fim de tarde,
marcado pela espera,
marcado pela saudade,
que fui avisado...
Foi um olhar ao longe a passar
pelas vias eternas do céu no coração.
A novidade que voa e me traz
outra vez ao peito em sua voz
nossa canção...
Foram às asas da saudade,
que solta pelos ares suas penas de amor.
Com uma batida forte fez proximidade,
como quem tece nova poesia, fingindo não ter dor...

Perpétua



A palavra que me levou a você.
A bendita palavra dita por anjos...
Um querer sobre outro querer,
amantes penas voaram...
Uma melodia, de flores alguns arranjos...
Afoitos, os olhos se inflamaram.
Sonhos de dia, sonhos na noite.
Noite de sonhos, sonhos no dia.
De tanto o tanto ser intenso, ele ria...
Sendas e setas flamejantes
de amor, e ele queria...

A Catraca



A Catraca

Os nossos olhares se devoravam.
E nada era para mim, além do seu calor.
Do seu corpo, do seu coração.
Levou-me o que sou,
veio comigo numa ausência tão profunda,
que era ali, sua presença,
aumentando em mim, a vontade de você...
Se alguém nos viu de longe naquele momento de partida,
talvez pensasse que brigávamos...
Mas se de perto alguém nos olhou,
por certo, doidos nos achou, de amor e paixão...
Pois eu já estava além de uma catraca de rodoviária,
e ainda te beijava, e seguravas minha mão...

A Ponte




A ponte que ligava meu passado de infância feliz,
de triste, fez-se travessia nova, por passos que largaram
pelo caminho, umas poeiras antigas.
Esqueci-me de muito.
E do que esqueci, onde deixei, até sem querer, as minhas marcas.
Um dedo de criança, as areias de brincadeiras ao vento,
um cartãozinho pra mamãe. Coisas sem fim.
Mas as botas do tempo também deixam as suas.
E tudo isso acabou sendo tingido por um lindo arco-íris.
De velha, nova e colorida tornou-se a ponte.

O Violinista




O Violinista


I

Essa é aquela fase do tempo quando se esfria e a estação desembarca um outono sobre os corações. Trata-se de um término de viagem entre nós, e o inverno está se aproximando com seu poder de nos trancar em casa e viver dias e noites perto da lareira, comer sopa e bolinho de chuva. O vento forte separa as folhas dos galhos secos a enfeitar as calçadas. As portas de madeira nas varandas resguardam um úmido aspecto escuro, que ao chegar à noite desaparece.
É uma época fria. Fria época de esquecimentos e lembranças, tudo o que vem e vai junto com a poeira levantada por tantas causas. Há rumores de uma grande tempestade, mas as velhas janelas, grandes, também amadeiradas, ao reproduzirem um pequeno ruído abafado por muros e vigas de concreto, denunciam um alarme falso e que a calmaria melancólica desse frio perpassa essas casas e está por aqui. À noite o sereno molha os telhados dessas casas, que pesam ter recebido uma chuva temporã.
É dia ainda. Existe uma velha praça na cidade frente ao “colégio dos padres” que pouco é freguentada. Os sapatos que costumam pisá-la são os que passam ocasionalmente por questão de trajeto. Foi assim que percebi que era ali um bom lugar para uma leitura. Compareci ao local numa tarde dessas com esse estranho e engraçado propósito, o de olhar palavras e suprir seus significados olho adentro. O frio estava implacável e somente me dei conta de qual romance escolhi para essa emboscada, no momento que me assentei no banco repleto de folhas. O colégio chamou-me atenção. Era como se ao me deparar ali, eu me tornasse um cavaleiro medieval, pronto para uma cruzada. Era um lugar misterioso. O colégio possuía um enorme pátio que se estendia até onde meus olhos não podiam mais alcançar, lembrava-me um castelo, e a sua frente havia um templo, uma capela. Realmente não sei o que havia ali, naquelas comportas. Tudo trancado. As vidraças da capela possuíam um colorido enegrecido, os detalhes da arquitetura falavam palavras religiosas. Histórias de monges, antiguidades não localizadas por mim.
As árvores de galhos secos da praça subiam até a extremidade da estrutura. Essa era cercada por grades de ferro, e ao final, por uma simples cerca de arames farpados. Possuía uma tintura desbotada pelo tempo, como tudo que a envolvia.
Um velhinho passou cortando a praça desviando-me de minhas observâncias. Trazia consigo um guarda-chuva e estava trajado todo de marrom, com um chapéu na cabeça. Examinou as horas num relógio de bolso, e a cada uns dez passos, parava para alimentar os pombos com migalhas que trazia em um saco de pães. Uma estátua de um provável religioso representante oficial do colégio recebeu a visita de um passarinho na cabeça, e recebia na careca umas bicadas, talvez para que a ave pegasse alguma semente que descia das árvores. Quando olhei de volta, o velhinho já estava longe, caminhando distante, apesar de lento.
Fazia-se já um fim de tarde acinzentado. O capim alto aos redores da praça deixavam-na assim, com uma aparência triste. Os postes de luz acendiam-se um a um enquanto resolvi assentar-me nas escadarias de fronte a capela. Percorri os olhos pelo prédio até suas maiores alturas. Olhei-o de uma perspectiva que o deixava maior do que realmente era, parecia que balançava pelos fortes ventos. O céu já feito noite compôs um receoso cenário, quase sombrio.
Quem já havia se assentado nessas escadarias? Quem pensou nos detalhes dessa arquitetura meio oca, meio barroca? Quem será que derramou gotas de suor ao trabalhar nessa construção? Por quais razões foram feitas preces debaixo desse teto? Questões demasiadas exageradas que não tinham respostas. Soavam-me como o mesmo que perguntar: quem apertou a tomada para ascender às luzes daqueles postes? Imaginei um homem velho e curvo a fazer esse trabalho em algum canto da cidade. Veio-me então ao pensamento o velhinho que passara a pouco alimentando os pombos. Seria ele o responsável pela praça? Pelos postes? Não sei. Sei que não pude ler uma linha sequer de meu romance em meio a essa cruzada.

II


Alguns pássaros cantarolavam numa manhã estendida e florida, com belas ramagens, como se fosse primavera. A bela orquestra natural encobria em mim, um pensamento infeliz, o de sentir nas estações um certo descompasso. É inegável admitir que hoje faz-se no inverno calor, e frio no verão. Há não tanto tempo atrás não era assim. Havia mais peixes no rio que atravessa a cidade, e ele era mais largo, parece que hoje se restringe a um riacho, miúdo, até umas crianças se arriscam a brincar ali. Na minha época de criança não. A gente respeitava o rio. Tínhamos um medo, e eu ficava às vezes a observar as garças, que livres eram felizes pelos ares a realizar a proeza de voar e pousar elegantemente em sua brancura, naquelas margens.
Tomei meu cavalo imaginário e continuei a cavalgar por uma floresta linda, contemplando um mundo perfeito. Cheguei ao final, num bosque cheio de encantos e comoventes paisagens naturais. Estava na verdade na esquina de minha casa. Os carros passavam baforando suas fumaças pelos ares, retirando um tijolo das minhas esperanças. Pude compreender em algumas partes assim, porque fui chamado de “visionário”, pelo delegado da comarca quando fui chamado a um julgamento para testemunhar um acidente que tinha visto.
- A justiça dos homens não é sempre justa meu caro! - segredou-me o promotor.
- É uma pena... – respondi.
Sinto ainda um ardente desejo de ajustar o mundo de suas perdas. Consertar os erros por acertos, com a contribuição de minhas unhas. Esquecer-me de mim, ouvir palavras de bocas caladas e conseguir percorrer a segunda milha. Sou miúdo, como hoje é, aquele que era um grande rio. Sei que sozinho não posso tudo, e que há resoluções que não cabem em minhas mãos, mas sei também, que de nada se pode desistir, apesar das más notícias que correm pelas ruas. Tento encontrar o fundamento. Aprendi esses dias atrás com umas formigas. Incansáveis, elas levavam sobre si, folhinhas amarelas. Havia uma fila muito grande delas, já era noite e elas ainda caminhavam em trabalho.
Entrei em minha casa ouvindo involuntariamente uma conversa de algumas vizinhas, que se demonstravam aliviadas porque a mãe do padeiro já estava melhor de saúde, estava adoentada.
- Graças a Deus, coitada, mulher tão bondosa! – Diziam as comadres.


III


Caminhava em uma noite. Minha alma necessitava de mais um passeio antes do início de mais uma semana de trabalho. Estava bem agasalhado. O tempo que fazia fez-me antes de sair, colocar uma blusa de lã por sobre meu paletó. Acheguei-me ao centro. Havia mais algumas pessoas na rua. Alguns a pé, de carro, famílias inteiras em restaurantes, uns namorados na praça e outros solitários. Eu era um desses. Quando menos imaginei, parei por um instante para apreciar a bela lua cheia. Estava ficando escondida por algumas nuvens. Dobrei a próxima esquina, era a rua da catedral. Imponente, tristemente bela, antiga, estava ali quem sabe há séculos, e eu como um tonto a observando como há poucos dias atrás observava o colégio.
A catedral dispensa maiores descrições. Muito mais alta que o colégio, é mais agradável aos olhos, no entanto, passou por mim um incômodo, como na outra cruzada. Essa já era noturna desde o princípio. Não havia livro, nem pombos, nem o velho, nem estatuas, bancos, somente alguns postes de luz em uma praça menor, de catedral. Nesse caso, o que mais atrai não são os apetrechos de uma praça, mas a própria catedral, e só ela. Não menos sombrio e religioso, o lugar era mais lúcido, mais lúdico, lírico, afável, contrário. Era grandioso, e vi aos fundos, por uma fresta de janela, uma luz acesa. Saí da frente da grande porta, essa era maior do que a do colégio, onde por certo, saíram muitos e muitos noivos para luas de mel. Saíram pessoas tristes por lembranças diversas, gente feliz, gente com fé. Dei a volta. Aos fundos, cheguei com o pensamento de querer entrar ali, romper esse novo mistério, não fazer como da outra vez. Mas, seria eu louco o suficiente para arrombar uma igreja á noite, apenas para satisfazer minha fobia inexplicável de querer conhecer as coisas, e justamente num horário que não correspondia com a normalidade?
Foi nesse momento que recebi um grande susto. A porta dos fundos fora aberta rapidamente. Um velho com cara de sono me indagou com tom de voz severa:
- Quem é você senhor?
- Olá...ehh, boa noite senhor!
- Boa noite, não respondeu minha pergunta.
- Perdoe-me, me chamo Paulo. É que passava e intriguei-me com a catedral.
- Há, sim...
Meus parafusos, cérebro de gente distraída, logo percebeu para minha surpresa que se tratava do velhinho da outra cruzada, do colégio, o mesmo que alimentava os pombos com migalhas, naquela inútil tarde de contemplação.
Agora, examinou o mesmo relógio de bolso, advertindo-me:
- Veja rapaz, já são vinte para as onze da noite ...
Não sei ao certo se o velhinho me disse isso com o intuito de me despedir. O que me veio no momento foram vozes de desocupações. Para que observar? Para que ocupar-se assim, com leituras, lua cheia, preocupações com as estações, um colégio velho e abandonado, incomodar um pobre ancião? Tal reflexão foi rápida, pois o velhinho pediu-me:
- Entre então rapaz, nunca entrou aqui?
- Não senhor...
- Tá precisando rezar mais heim! Entre.
Entrei acompanhando-o pela porta que era a ligação do pátio para uma saleta de repouso.
- Costumo fazer minhas orações em casa mesmo - respondi, acredito que Deus criou o universo, a terra, a lua. Não entendo só esse negócio de São Jorge estar lá, montado num cavalo branco, com uma espada nas mãos.
Assentando-se num sofá continuou meu anfitrião:
- Sabe filho, eu também não entendo muita coisa, não sei muita coisa, mas estou aqui. Há vinte e seis anos essa é minha casa. Cuido desse lugar como uma mãe cuida de seu bebê.
O velho parou por um instante com o olhar cravado em uma fotografia em preto e branco, que ficava em cima de uma cômoda em verniz. Assentei-me também na esperança de ouvir dele algumas histórias.


IV

Não as pedi por palavra, vieram algumas:
- Paulo, está vendo esta mulher?- Disse mostrando-me a fotografia. É minha esposa, ela me deixou há vinte e seis anos. Nós nos casamos aqui. Depois de sua partida, fui convidado a trabalhar aqui, estava quase aposentando-me e aceitei. Sabe, eu a amei muito. E amo. O amor não morre, você sabia?
- Creio que sim, senhor.
Os olhos dele brilharam. E logo despontou-lhe um sorriso no rosto, dizendo-me:
- Fomos felizes. Lembro-me de quando a conheci, quando a vi pela primeira vez. Ela era uma moçoila, eu um rapazote. Ela passava com os pais e sua irmã mais velha por uma rua de travessa, onde acontecia um desfile, por ocasião de aniversario da cidade. Estava linda. Usava um vestido claro e um chapeuzinho que lhe deixava o rosto ainda mais delicado. Em um momento olhou para mim. Eu passava entre as pessoas para ir embora. Fui, mas levei comigo aquele olhar. Olhar de amor, longo e profundo. Desde aquele dia, eu a amo para sempre.
Um instante de silêncio acorreu enquanto ele observava na fotografia a esposa. Aquela observação profunda parecia uma continuação daquele primeiro olhar de amor que ele ganhara dela. O silêncio estendeu-se mais um pouco, e tive assim tempo para me lembrar que o homem já me havia chamado pelo nome, contara-me coisas de seu coração, e eu, desligado, pela vagabundez de minha memória, ainda não havia lhe perguntado o nome. Ousei interrompê-lo:
- O senhor ...
- Desculpe, o que foi Paulo?
- Eu que lhe peço desculpas, como o senhor se chama mesmo?
- Bernardo de Campos.
- Realmente o senhor a ama muito Sr. Bernardo.
- É sim. Bom, não quer conhecer mais a dentro?
- Claro que sim.
Sentia ali o estupor de romper aquele mistério.
Saímos da sala e adentramos outra maior. Passamos por um corredor e entramos por um enorme vão que dava para o centro da catedral. Obtive uma ampla visão. No silêncio daquele escuro, ouvia cantos gregorianos, altos e uma aguda reverência apoderou-se de mim. Deus estava ali, Bernardo e eu.
O altar era lindíssimo, os vitrais diziam em cacos coloridos, palavras que guardei alma adentro. Bernardo havia acendido poucos lustres. Como o interior do lugar fosse enorme, os lustres não davam conta de suprir toda aquela escuridão e umas luzes a frente do altar faiscavam em destaque, comportadas em um castiçal de sete velas. Sem a presença de pessoas, quase eu diria que o ambiente ficara medonho, quase fúnebre, e me importei em pensamento, enquanto lentamente caminhávamos, com o pobre Bernardo vivendo ali.
Agora o que me fazia pensar eram os grossos pilares, de tamanhos impressionantes que se encontravam nas alturas e se abraçavam ao redor da cúpula. Lá em cima, distante, ela era vista em formas diversas, divergindo a visão conforme a posição em que se olhava. Divergência essa que confundia, deveria ter sido projetada por um exímio artista de arquitetura, que quando desempenhara essa arte devia estar passando por algum grande sofrimento.
Após muito silêncio, quando já estávamos ao lado oposto do grande vão por onde entramos, avistei a porta grande, de entrada, a que por onde entram e saem os noivos, as pessoas todas, o velho Bernardo, que me perguntou:
- Quer subir e ver de perto onde fica o sino?
Aceitei e fomos pelo corredor paralelo ao outro que á frente se escondia por detrás do altar. Subimos por muitos degraus, cada um como uma vértebra de um enorme corpo.
Algo em minha alma fazia-se deslocado, obscuro, mas essa não era necessariamente uma sensação ruim, apenas não localizada.
- Veja Paulo – apresentou-me com uma face de contentamento, como quem guarda um segredo- esse ó coração da catedral.
Realmente era um belo segredo, pois sempre ouvira o tocar do sino da catedral sem vê-lo e em horas que sequer quisera ouvir, e agora estava eu vendo-o sem ouvir dele som algum.
De um lance contemplei das alturas as luzes da cidade que lá embaixo piscavam, por um momento parecia estar mais próximo das estrelas do que do chão, claro, não era verdade, demoramo-nos mais um tempo. Como o velho percebeu que eu havia ficado muito entretido naquele ponto, ele desceu primeiro e eu fiquei por mais um tempo sozinho.

V


Depois desci e vi Bernardo assentado num dos últimos bancos da nave. Irrompeu meu silêncio:
- Jovem Paulo, sabias que aqui não estou só? Agora mesmo antes de você chegar, estava fazendo uma prece, e sinto que meu anjo está aqui, ao meu lado nesse banco e me acompanha por onde vou. Sabe, gosto muito do seu nome, me faz lembrar o apóstolo, que como eu não estava sozinho em certos momentos que parecia estar.
- Por certo Sr.Bernardo- concordei com ele admirado e compadecido, em meio a minha incredulidade em comparação a grande fé que possuía o velho.
-Venha pra cá Paulo, quero te mostrar outra coisa.
Voltamos à primeira sala e Bernardo puxou um baú que estava num canto inferior de uma estante. Abriu-o e retirou de dentro um violino. Parecia que o instrumento estava muito bem cuidado, coisas de quem guarda com amor, relíquias que com o passar do tempo constituem e matem o mesmo significado de sempre.
- O senhor toca?
- Gosto muito... ganhei-o de meu pai, Maria Lúcia gostava muito de me ouvir tocar.
Saíram assim de Bernardo e do violino, uma bela melodia. Triste, como é geralmente o som desse instrumento, no entanto, nas mãos dele, as notas pareciam-me dizer, anunciar, confortar, em notas que viravam palavras. Menores, que faziam-se em mim grandes, sustenidas que não sei como me sustentaram naquela noite.
- Sabe Paulo, essas notas tem me aliviado há anos, são minhas amigas, a música tem o dom de calar e falar ao mesmo tempo. E precisava lhe dizer, quando você desceu lá do sino, além da prece, eu comigo imaginava um aprendizado que você me ajudou a ter: templos são como corações.
Fiquei não sei se mais constrangido ou feliz por essa palavra, e ainda intrigado com ela.
- Obrigado Sr. Bernardo, mas o senhor é que me ajudou hoje. Ele me abraçou com o mesmo carinho que fazem os avôs.
Nem duas semanas haviam se passado e eu estava com muita vontade de ir fazer agora uma visita ao Bernardo, pois o conhecia e não seria ali levado por outra coisa a não ser pela vontade de revê-lo, quem sabe ouvir mais uma vez suas melodias.
Antes de me preparar, no entanto, para numa noite dessas ir visitá-lo, no fim de tarde desse mesmo dia passei numa banca de jornal para ler alguma coisa. Para encurtar esse momento triste desse meu testemunho, li no jornal várias coisas e sem alguma pretensão entre elas, nas últimas páginas a nota de falecimento, e constara ali o nome dele “Sr. Bernardo de Campos que era viúvo de Dna. Maria Lúcia de Campos, não tiveram filhos”. Falecera no dia anterior.
Não me consta do que foi. Não me recordo para ser sincero, pois quando vi ali o seu nome, esqueci do resto e chorei. Deve ter sido a velhice. Na verdade isso não é o que mais me importava. Tentei me lembrar naquele momento de outras coisas, como as que me lembro agora, a voz do velho Bernardo me comparando com o grande apóstolo Paulo, os ensinamentos daquela noite. Lembrei-me do jeito como olhava a mulher no retrato e do novo conceito de música que aprendi pelas notas do violino.
Descobri algo novo dele. Não me dissera que não tiveram filhos. Até assim ele me ensinou, que os frutos do amor sobrevivem e existem sem mesmo outra criatura surgir de duas primeiras. Agora eu é que faço uma comparação: Já li sobre a história de *Inês de Castro e Dom Pedro, um amor além da vida, enterrados próximos, para ressurgirem juntos, no dia da final ressurreição. Maria Lúcia e Bernardo estavam assim agora, nessa mesma condição. Se não conhecidos na história, cravados pelo menos para sempre na minha, através de um belíssimo ensinamento dele, o amor não morre.

A Força da Vida



A força da vida



I - O andar dos dias

Pelas altas montanhas na antiga Itália, em rudimentares e memoráveis dias medievais, a vida transcorria pacata e aventureira. Os ruídos das espadas afinadas em batalha, estavam a cada dia silenciando-se, comunicando assim um tempo diferente, uma nova fase da história do mundo. Não tão nova fase, talvez apenas uma visão, afinal as guerras continuariam incondicionais e constantes, antes com cavalos e depois com aviões. O certo é que elas persistiriam pelos séculos da existência humana.
Por entre bosques de belos arvoredos que esverdeavam por baixo a terra, em uma distinta harmonia de cores, com o céu de um azul carregado e belíssimo, os camponeses do vilarejo de Vinci na Toscana, margeado pelo rio Arno, trabalhavam contentes na sua lida diária.
Os afazeres dos homens eram mais nutridos de coragem e força, dispostos e pioneiros, na lavoura, no trato com os animais, nas trilhas das tardes todas, solitários, entre amigos, iam, robustos e sonhadores. As mulheres no seio da sua hereditariedade cuidavam dedicadamente da parte que lhes cabiam, entre lenhas e linhas, frutos, leites e aparatos artesanais. Teciam ainda outros serviços, resmungando alguma cantiga.
Catarina era uma dessas mulheres desprendidas e abnegadas, que possuía em seu ser, toda a força contida em uma flor. Em uma noite chuvosa, ela aguardava o marido chegar da cidade, que não muito distante, trabalhava como notório na casa de um certo Sr. Cassiano Alviero, proprietário de grandes posses na Florença.
Ela ficava mais ansiosa a cada vento que soprasse à sua janela, cada um demarcava um segundo adicional na demora de Piero, que não tinha por costume atrasar-se para chegar a sua casa. Catarina estava na sala da choupana, cosendo alguma coisa para poder vender às vizinhas, enquanto seu filho Leonardo, fechado em seu quarto, rabiscava um desenho numa folha avulsa.
Como o filho fazia grande silêncio, Catarina levantou-se para averiguar se estava tudo bem com o garoto. Chegou à porta, abriu-a e por alguns segundos observava-o em sua cadeira junto à janela, ainda com a pena na mão esquerda. Os únicos ruídos emitidos do quarto, era a profunda respiração do menino e o passar ligeiro, às vezes lento, de seu punho sobre a mesa. Após um instante, perguntou-lhe a mãe:
- Léo, tudo bem com você filho?
Como estava num misto de concentração e distração, pela repentina aparição da mulher, respondeu assustado:
-Tudo mãe, tudo bem...
-O que está fazendo?
-Um desenho.
- De quê?
-De um anjo e uma criança...
-Hum...deve estar lindo, posso ver?
-Ah mãe, só depois que eu terminar, pode ser?
-Pode...
-E o papai não chegou ainda?
Como se ele adivinhasse, o ruído dos cascos de um cavalo fez-se ouvir ao lado de fora da varanda.
-Deve ser ele chegando agora filho, deixa abrir-lhe a porta.
Piero adentrou a sala todo ensopado da torrencial chuva que caía. Deu um beijo na esposa que o recebeu com meiguice, retirou a capa e as botas encharcadas e assentou-se num banco de madeira, que ficava ao lado da porta que era entrada para o quarto do casal, mas ainda na sala.
- Que chuva mulher, será outro dilúvio? O Pangaré escorregou no caminho, enquanto trotava forte no meio da estrada, quase caí de cima...
-Ô homem, estava tão preocupada com você! Graças a Deus você está são e salvo...
O motivo óbvio pelo atraso dele, fora justamente esse temporal, que não cansava de se derramar pela vastidão das campinas que contornavam toda vila.
-E o Léo?
-Tá no quarto desenhando.
-Como sempre...
-Não sei, ele anda tão diferente ultimamente, tão quieto...
-Como você disse, você não sabe... Não deve ser nada de mais, ele é um adolescente não é? Deve estar preocupado com alguma coisa, bobagem...
-Espero...



II – O desenho

Preocupação de pai e mãe é como um jornal, após um processo de várias informações, dá-se a cada dia.
Catarina e Piero foram dormir nessa noite cuja tormenta aguada e ruidosa, não cessava de gritar no forro da choupana. Antes, ao irem desejar ao filho uma boa noite, viram-no debruçado sobre sua mesa, dormindo com o rosto sobre a folha que estava desenhando.
O primeiro impulso do pai fora o de tomá-lo aos braços e carrega-lo até a cama.
-Espere Piero...
-Que há mulher...
-Não o leve até a cama.
-Porque não?
-Eu pedi a ele para que me mostrasse esse desenho aí, e ele não o quis. Se você tirá-lo daí, vai pensar que fui eu quem o tirou, e por conseqüência vai pensar que bisbilhotei o desenho, que não queria que eu visse antes dele aprontá-lo...
-Ora mulher, eu o coloca na cama e você não olha o desenho. Amanhã se preciso, dizemos isso.
Ao que parece, Catarina observou isso, justamente porque estava muito curiosa para ver o desenho do filho, afinal, lembrara-se que ele lhe tinha dito certa fez, que o desenho era uma forma de externar, o que existe dentro daquele que o fez. Como há dias, o incômodo pensamento que o filho estava realmente calado e com os comportamentos mudados atormentavam o seu materno coração, pensara na possibilidade de ver no desenho, algum indício, que pudesse revelar ao menos qualquer detalhe do seu interior. No exato momento em que seu marido, com muito cuidado para não o acordar, tomou-o ao peito, aproximou-se sem que ele percebesse com três passos da mesa. Olhou rapidamente e fixou aos olhos aquela imagem.
Saíram do quarto em silêncio, e foram para o seu repousar. Piero por estar num sono forte que logo o derrubaria como uma pedra lançada ao mar, não pôde devido a isso, contemplar os olhos brilhantes de lágrimas que fluíram na face da esposa ao saírem do quarto do filho.
A angústia que afligia aquela mãe, no mínimo dobrou em proporção ao que lhe estava na alma. Pensou que não devia ter olhado o desenho que o filho fazia, pois assim ele o pedira. Mas a razão preponderante para que se agravasse sua angústia, não era a de simplesmente ter olhado o desenho, mas a de ter olhado e visto não um anjo e uma criança como Leonardo o dissera.
O que havia na folha era uma linda caricatura extremamente rica de detalhes do rosto de uma mulher. E para completar o enigma, havia ao lado do desenho, um papelzinho como de rascunho, cujas letras que o compunham diziam em uma frase: “La Forza della Vita.”
Por certo quem olhar por alto tal situação, irá imaginar que Catarina fosse uma mulher exagerada e que ainda não respeitava aquilo que o filho lhe pedira. Esse é um lado da moeda. O outro que é contornado por um coração de mãe, pensa de outra maneira, e não apenas pensa, mas pergunta dentro de si:
Quem é essa mulher? Por que “La Forza della Vita?” Por que ele disse que desenhara uma coisa e na verdade era outra? Por que meu filho mentiu para mim?


III – Tristeza

Catarina dormira muito mal naquela noite. Tentou, entretanto, não demonstrar ao filho e ao marido que não estava bem e que andava muito incomodada.
Leonardo não desconfiou que sua mãe, havia visto a caricatura que fizera na véspera. Saiu de casa para ir ao colégio e levou consigo além dos materiais cotidianos de uso de um jovem de 14 anos, alguns aparatos que sua vida de artista desastrado costuma carregar. Em plena juventude, o rapaz já teria tido algumas experiências mordazes, o que de fato o fazia pensar, desenhar e pensar mais um pouco. O que mais era razão de um determinado descontrole emocional, e que o fazia estar angustiado como sua mãe, mas de uma outra maneira, era de certa forma, pela mesma causa. A caricatura. Para a mãe era a caricatura, e o que ela poderia significar. Haveria uma mulher real para um menino de 14 anos?
Para ele, a desventura; era a de estar apaixonado pela menina que desfigurou seu coração. A menina que há alguns tempos também o incomodava todas as noites, acordado ou nos sonhos, com o seu olhar fatal, derradeiro e simplesmente maravilhoso, indizível. A menina que via todos os dias no colégio, e que naquela noite, ele copiou do seu coração em uma folha, a imagem do rosto dela, incrustada em seu ser, pintada com as cores do amor.
“Giuliana. Como dizer-te de meu amor por ti”?
Essa era sua angústia e tristeza. Dessa forma é que ele foi, carregando dentro da bolsa, a caricatura para entregá-la de presente à moça, em algum momento em que ela se achasse sozinha, afinal, seria mais fácil, um presente e uma declaração ao mesmo tempo. Se precisasse, ele pensara improvisar alguma palavra, senão, apenas o presente.
E de fato, Catarina sem saber tinha razão. Tratava-se de uma obra lindíssima, e de difícil descrição. Um desenho raro para um jovem de sua idade, com uma genialidade ímpar, composta por alguém que ia além das coisas superficiais. Uma obra prima que fazia ecoar aos olhos e aos sentidos, mais que uma nova arte, a transfiguração extrema do que já não podia caber dentro dele.
Cabe aqui ressaltar outra tristeza. Essa dolorida forma de amar, não representava ao jovem sua única via de sofrimento, que o fazia por vezes, viver num silêncio inexplicável. A real explicação que ele escondia em um outro silêncio era essa: Leonardo era visto em seus meios de relacionamentos, que não eram muitos, como um menino um tanto diferente dos outros. Ele não entendia a princípio, alguns olhares que a ele eram estranhamente lançados. Desde pequeno os outros companheiros de escola e do vilarejo diziam-lhe que ele parecia ser mais uma menina, com seu jeito. Uma menina. E mexiam muito com ele, e em muito, sem verem, faziam-no chorar, ofendendo-o com nomes dolosos, que ele sequer compreendia. Mais tarde, quando mais crescido, Leonardo conseguiu entender tudo o que diziam dele. E pensava que todos estavam enganados, afinal de contas, o primeiro amor que tivera, que era justamente por Giuliana, desmentia a todos. Sentia algo muito forte por uma menina, o que comprovava que ele era um menino como outro qualquer. Isso o tornava calado, sozinho muitas vezes. Não que não tivesse amigos, mas sofria quando alguém lhe lançava uns juízos desses.
Sobre isso, pensava ainda em permanecer como estava, em silêncio. Se ele possuía sua verdade interior, para quê tentar provar aos outros alguma coisa, parecendo estar assim em um estado de dívida? Estabeleceu-se assim, pondo em risco sua jovial integridade, por respeito à própria consciência, que queria estar em paz, e agora essa lhe pedia algo urgente: “Entregue logo esse presente a Giuliana!”. Isso lhe trazia alegria, ainda que, com a barriga gelada, como escorregando no tobogã da paixão, sinuoso, frio e inesperado...
O dia de aula estava a despedir-se e Leonardo pensou que teria de voltar para casa com o presente, e deixar para outra data o dia dessa revelação de amor, pelos traços de uma pena. Haveria ela de gostar? O sino anunciou a saída, quando ele ainda refletia na reação que teria a moça, e ainda questionava se sua coragem era suficiente para chegar ao campo da atitude. Pensamentos, ansiedades, e todas as demais ocorrências ficariam para o dia seguinte.
Mas como o inesperado faz jus ao seu nome, e obedece friamente em seu significado o prefixo que modifica num segundo as situações, o rapaz não voltou para casa com a caricatura. Por um corredor pouco movimentado àquela hora, um vespertino acaso o colocou frente à moça, que se assustou ao vê-lo de relance. Haviam virado juntos a mesma parede que possuía dois acessos, e quase se trombaram.
Não sabia se saía em disparada ou se abria um buraco no vento, onde soprasse por uma fresta, longe dali. De súbito, numa quase convulsão de nervos, ao olhar mais para o chão que para a moça, retirando da bolsa o presente, disse-lhe:
-Giuliana, isso é para você...
- O quê?
- Aceite, vem do fundo do meu coração!
Com uma impressionante frieza e impiedade, ao olhar por um segundo a caricatura, a moça desfez aquele papel manchado pelo amor, em mil pedaços despencados ao chão.
Ela deu por costas, e sumiu a passos largos pelo corredor. Leonardo permaneceu estático no mesmo canto, deixando rolar na face umas lágrimas insistentes; enquanto os lindos olhos azuis, o observavam do chão, caprichosamente rasgado das outras partes picadas que formavam a face dela.

IV – Bucolismo


Alguns dias haviam se passado, e o rapaz possuía dentro do peito o coração como havia ficado aquela sua arte. Em tantos pedaços estava, que já não era possível uma reconstrução, uma busca que recomporia as partes desligadas. Uma vez rompida, rompida para sempre, pensava, e indubitavelmente esse era o temor a respeito do seu próprio ser.
A atitude da jovem lhe era monstruosa. Esse novo incômodo do filho, por vezes fazia Catarina observar-lo à distância, a pensar o que haveria de ser. Solitário, ele permanecia tardes inteiras, junto a um pedaço de cerca que existia ao lado do rio, tocando sua flauta doce. Enquanto de sua casa a mãe o via, numa atmosfera de tristeza, não sabia se ele passava por uma contemplação natural, ou uma reflexão existencial.
Tudo era a mesma coisa. As águas que corriam confundiam-se com sua melodia. Os pensamentos da tarde eram como os pássaros que voavam para outro lugar muito distante, algum retiro de luz, e campos que esverdeavam em uma serena paz, onde pudesse encontrar o que o seu quintal deixara-lhe de proporcionar. Por dias esteve assim. Sua maior companheira depois da flauta era uma ovelha que pastava ao seu lado, em algumas caminhadas que fazia pelos campos. Ela sempre o acompanhava naquelas margens, nos seus momentos de fluência, entre nuvens, arbustos e infinitos pensamentos.
Não deveria ser realmente um rapaz diferente?
Giuliana via-o todos os dias na mesma sala. Não trocaram mais que dois ou três breves diálogos durante um ano inteiro, ainda assim, amava-a independentemente se fossem duas ou duzentas prosas. E ao findar desse período, esse insignificante conhecimento, fora coroado com esse incidente trágico para ele. Provavelmente, se fosse uma outra menina, se fosse alguém que não estava marcada pelo teimoso olhar abobado de quem sente forte o coração ao vê-la, talvez fosse diferente.
Muito certo seria, que a outra ao ver a caricatura, sentiria o maior elogio não verbal possível. Sentiria fatalmente a declaração clara de quem a perscrutara em resquícios, nos detalhes mais ínfimos, que descrevessem um traço facial. Reconheceria em todos esses mínimos atributos, uma sinceridade velada, traduzida num assombroso conhecimento. Seria como olhar num espelho, além do concreto, o espelho da alma.
Mas se não houvesse o amor, não haveria razão de ter a caricatura sua existência, ou seja, o risco de entregá-la foi necessário para se colocar a prova o que se haveria de ocorrer. Com certeza, a outra deveria ficar vermelha pela quase afronta, mas seria tão boa, que ao menos agradeceria. E mais, se fosse ela mais atrevida que graciosa, o agradecimento viria através de um beijo.
O que não ocorrera no caso, fora a existência de tal complacência ao autor. A suposta e benévola moça imaginaria além de agradecer, quem sabe com a sorte citada, também percorreria um pouco mais em demora, os olhos sobre ele, e enxergaria um rapaz formidável, realmente diferente dos demais. O desastre pelo que se nota, dá-se ao fato da outra não ter recebido o presente, sequer ela existiu. A suicida fora Giuliana, de carne e osso, coração de pedra, e olhos lindíssimos azuis, essa sim existia.
A desgraça da paixão deu-se as caras por uma clara razão no coração dessa louca. Ela não pôde ver alguém tão bom e casto que a (outra) vira. Não era formidável, e isso lhe era completamente coerente e explicável:
Para um início convincente de explicação, e provar seus pensamentos e atitude sobre ele, seria necessária a resposta afirmativa para essa pergunta, se por um milagre ele tivesse uma remota chance: Trata-se de um rapaz normal? Ou seja, qual é a moça que por mais feia ou bonita, gostaria de achar-se ligada intimamente com um ser estranho?
Ela o achava assim. Não pelo senso comum que o recriminava de forma injusta, mas encontrou para si, razões peculiares para achá-lo um tanto repugnante. O silêncio tão inerente a ele, denotado virtude para muitos, soou para ela como uma falta de capacidade muito grande, como um menino franzino, quietinho, sem jeito, sem futuro, sem condições, sem aptidões, sem gosto, sem amigos e sem graça. Ele era um tanto desengonçado pelas vezes que o notara, por conseguinte, o achou também sem beleza. E que menina comunicativa, de tratos mais refinados, que não morasse numa vila como a da Vinci, e que possuísse um lindíssimo e desejável par de olhos azuis, namoraria um “estrambólico”?
E o pior de tudo, era canhoto. Cuidava ela como sua avó dizia que devido a isso, ele deveria ser um enviado do diabo, e para completar, tinha um enorme nariz feio e torto.





V – Coração Medieval


Registros como esses, não devem ser comuns e o são por tantas causas, que acabam confundindo os verbos do que consideramos corriqueiro.
O que tudo quer dizer, é que o futuro aconteceu para o jovem artista, com sua misteriosa maneira de silenciar-se, e gritar por formas escorridas em muitas e muitas telas. Cresceu considerando a vida e a natureza, grandes fontes de aprendizado, por onde transcorreria sua perfeita visão de abstrair o mortuário e torná-lo gesto de viver.
Exatamente no futuro de Leonardo, o vemos em suspiros de vida, calcando os pés o ano de 1511, olhando para trás, onde deixara sua juventude, em dias distantes desse novo século. O vemos deixando também, o vilarejo da Vinci, sua flauta, sua ovelha amiga, e os saudosos pais que morreriam, deixando-o com muita saudade. Deixou também lá atrás, nos dias da adolescência, o velho Verrocchio em seu ateliê, onde aprendeu com esse mestre muitas técnicas, muitos detalhes e alguns segredos. Trouxe esse homem pelos anos, guardando-o como uma velha pintura inacabada, como também deixara outras artes pelo caminho, não querendo terminar nunca o que ele considerava não caber no tempo. Coisas impronunciáveis, e as aceitava como dignas de uma eterna contemplação, portanto inacabáveis.
É justo que tantas vezes ele o fez. Tentou colocar na arte da existência, cenários e significados que julgava não poder exprimir em sua totalidade, a riqueza e a grandeza. Esse pensamento ia e vinha com o tempo, e por vezes variavam. Um caso de expressão, que considerava infinda, que ousou com séria ventura compreender em uma bela e grande moldura, fora a “Última Ceia”. Tanto lhe incomodava o pensamento das vezes que refletira no sagrado e no profano, que decidiu pintar o momento que tumultuava o seu coração, quando em sua tristeza, tentava suprimir a tristeza do Senhor. Interpretou o instante que Ele anunciara a todos a eminente e cruel traição que lhe aconteceria. Aquela cena de alvoroço pela notícia dada, era a comunicação do terror que se daria ao verem o Cristo brevemente crucificado, ainda ao desconhecerem o que seria por completo. Era o registro barroco. O alvo e o escuro encontraram-se ali. Uma estranha dualidade, que anunciava em uma única beleza, dois lados opostos: O eterno intento do criador pelos simbólicos gestos da ceia, que haveria de ser perdurada por entre a eternidade, numa memória interminável de amor não consumado; e a tentativa maléfica e cega do Judas de enganar O que se não pode enganar, e sua lança de preciptação diante dos outros onze discípulos. A turba era predita, o enforcamento do infeliz se daria, e o que antecedia tudo isto, era aquela mesma sala, com Jesus e apenas onze e não mais doze homens.
. Leonardo traduziu esse momento em uma tela, e julgava que se quisesse traduzir em sua completude, tudo o que ele podia dizer, precisaria de mais algumas delas. É dispensável dizer que tal descrição é insuficiente para convencer o vil conceito humano, de achar chifres nas cabeças dos cavalos, pois pensam poder compreender tudo o que um artista quer dizer. Esta é a diferença contundente. O que foi lançado aqui, foi o pensar devidamente informado sobre o autor, e não apenas meras e possíveis interpretações, passivas de serem taxadas como idiotas. Nunca que fosse a curiosidade, algo que chegasse à beira da estupidez, mas o contrário, ela é um tanto saudável; no entanto, o falso método de comprovação, jaz mergulhado nas águas da ignorância.
Tal obra foi aqui descrita para garantir pelas limitadas, porém, profundas intenções do artista, que nem sempre sua arte é uma fonte de mentiras, dúvidas e enigmas. Às vezes eles existem, mas não com os tolos propósitos criados pela inútil modernidade, que enganosamente acredita ser onisciente.
O que ternamente comprova isso em uma sutil revelação de alivio e felicidade, são os puros olhos da mãe Catarina que brilharam, há tantos anos atrás. Em um daqueles dias em que seu filho estava extremamente silenciado, intentou entrar em seu quarto, para dar mais uma olhadinha em algum desenho. Para sua surpresa, a caricatura da “mulher” não estava mais por ali, mas ao abrir uma das gavetas da mesa, encontrou um novo desenho. Um belo anjo com asas enormes, que segurava uma criança pelas mãos; numa paisagem campestre, entre um azul celeste e nuvens claríssimas. Eis a sinceridade do artista, que jamais enganara sua mãe.
Ele não costumava, por onde passava; pregar tais idéias inférteis, os julgamentos eternos e malvados da humanidade. Não usava a arte por roubo, e há indícios que ele realmente não estava preparado para viver o tempo do modernismo que se daria à luz. Nunca estaria. Sua vida pedia ares de dias sinceros, coisas que entendem somente quem viveu em dias antológicos, e que inspiravam amor e arte real. O coração dele não era moderno, era antigo mesmo; tingido de pasta de abacate com banana, como em suas artes clássicas. O coração dele era medieval.




VI – Uma face escondida do Renascimento

Das cavalarias apenas lembranças. Quadros de recordações foram produzidos, repletos de saudades e antigas observações, postas amostra. Silêncios indecifráveis, que com toda certeza, servirão de objeto de estudo, para quem um dia irá tomar uma conclusão maluca e desnorteada, do que pensam ser superficial. É assim que imaginam decifrar os enlaces de um gênio.
Leonardo vivera perscrutando o oculto de cada sombra. Costurava remendos imaginários e tecia-os com a singularidade do sol para esse sistema solar. Calado, sem explicar-se, tornou milhões de outras pessoas dessa forma, quando em outros tempos, contemplavam sua matéria em algum museu do mundo.
Percorreu alguns cantos dele. Discorreu sobre suas tantas teorias difundidas, que podia paralisar alguns pensadores. Explicar em poucas linhas sobre suas atividades anatômicas, mecânicas e químicas não pode ser possível. Sua poesia, música, arquitetura, teoremas matemáticos e físicos pedem alguns séculos de analise minuciosa entre gerações inteiras, e resumi-los é incabível, assim como um navio não pode caber dentro de um copo d’água. Enfim, é muito inútil olhar por alto algumas coisas. O diagrama científico de Leonardo insere no intelecto humano, informações geniosas, coisas complexas demais para pessoas arrogantes, que pensam saber tudo, e que desprezam o contínuo aprendizado. Nos dias dele, essas duvidariam da hipótese que ele lançara de um possível helicóptero, ou mesmo o uso da energia solar, ou da rudimentar tese a respeito das placas tectônicas. Deixa, existe muito ainda do que se poderia falar e não o foi, talvez um enciumado modernista da atualidade desmentisse a verdade, e creditaria um valor inestimável a alguma coisa mais inútil que as críticas enganosas.
Para esses, pode-se deixar um conselho singular de mais uma teoria dele: “Que o teu orgulho e objetivo consistam em pôr no teu trabalho algo que se assemelhe a um milagre”. É evidente que nesse caso, alguns prefeririam e preferem deixar o trabalho de lado, alegando um grave problema de saúde ou outro qualquer.
Sim. Verdadeiramente, há tempos atrás uma linda moçinha loira de 15 anos, de olhos azuis lindíssimos, metida e fresquinha, tinha razão. Ele não era um rapaz normal!
Tão anormal que desde aqueles tempos era vegetariano, adepto a um regime alimentar que dispensasse os finos manjares, deliciosos e nojentos, que a maioria dos seus contemporâneos prestigiavam. Filósofo desde a tenra idade, não poderia ser como os meninos que Giuliana certamente valorizava.
Quando já podia ter o seu próprio sustento, geralmente não desperdiçava nada com utensílios e coisas banais. Afinal, era inteligente. Usava boa parte do que ganhava para comprar passarinhos engaiolados, para os libertarem; fazia isso com outros animais de maior porte também. Como alcançar tal estágio de favor benéfico? E ele sempre tinha alguma coisa com o que presentear a velha Catarina e o velho Piero. Eram coisas simples; uma cadeira nova, um guardanapo bordado, uma ferramenta para o pai, um chapéu ou um quadro que fazia alusão a alguma coisa do gosto deles.
Coisas e coisas. Que compreendem aqueles que de tanto inspirar-se num alvo digno, sopraram por todos os lados a brisa fantástica da transpiração que paralisa os sentidos; e depois os move, por uma direção subjetiva e concreta ao mesmo tempo. É que a sua arte possuía esse ambíguo caráter, de aliviar e provocar, de maravilhar e assombrar. De comunicar e de esconder. Deve ser por razões como essas que, contemplamos testemunhos sobre ele que relatam: “De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas também divino, de modo que através do seu espírito e da superioridade de sua inteligência, possamos atingir o céu”.
A genialidade é assim. Não, ele não era um anjo; e como vistes, seu amor foi espantosamente negado. Há o relato, de que após o evento da moça dos olhos azuis lindíssimos, ele tenha desistido para o resto da vida, de um eventual novo amor; e por esse tempo para traduzir sua luta interior tenha pintado “Batalha de Anghiari”.
O concreto é que da vida jamais desistira, era apaixonado por ela, ainda que o tempo que o descreve como gênio não tenha compreendido o que de mais superior nela existia. O feudalismo ia-se para dar o seu lugar ao capitalismo. As mudanças extraordinárias nas ciências, artes e filosofias demarcavam a supremacia desse tempo sensacional. Tudo sensacional. Ainda hoje, há provas que daqueles dias o homem não descobriu o essencial, daqueles e de todos os tempos. O essencial que Leonardo da Vinci dizia em todas as suas artes.
Como todo gênio, um dia ele também se foi. Mas, deixemo-lo em sua magnitude, vivo na memória; reunindo o povo em alguma praça na Florença, expondo seus preciosos tratados, com sua imortal arte, e sua lira que fizera, para tocar suas melodias. Lá ele dizia, coisas que eram mais que palavras; mas infelizmente para os modernistas, as muitas interpretações que fazem para “Monalisa”, estão todas completamente equivocadas.

A Casa de Barro




A saudade é uma velha casa de barro.
Aquela casinha simples, que nunca sai daquela rua.
Que mora em mim, nos caminhos todos.
Ela é de barro, ela é de lodo.
É de chão vermelho, da cor do sangue.
Da cor da rosa que naquele dia lhe entreguei.
Sou daqui, e gosto desse teto.
Não há aluguel, ou um olhar que eu empresto,
que me leve, sem que eu queira.
Eu vivo assim, numa casinha de barro.

E há quem diga que a mansão é fria e escura.
Porque iria abandonar o meu lar?
Ele também é, mas por vezes que se cruzam,
umas brechas da janela trazem luz, que faz brilhar...
E nesse jeito meio doído e solitário,
o meu chão não cansa de me olhar,
quando fluídos em mim, correm o sangue da saudade,
cor de quem ama e de quem aprendeu morar...
O jardim de fora me traz o que é teu, cheiro e rosa.
Eu vivo assim, numa casinha de barro.

Os olhos da calçada que vigiam
no telhado à noite quando vou dormir,
aguardam em espera, a correspondência que diria,
minha amiga longe se estivesse aqui...
Lá do outro lado está ela, onde a saudade é só saudade.
Numa outra casinha avermelhada, morar por morar.
Lugar pleno é assim, simplicidade,
que me acolhe por entre as portas desse seu olhar...
Até quando, não o sei, Deus quem sabe; por barato ou caro,
eu vivo assim, numa casinha de barro.

O Ladrão




Não posso contrariar a maré, se ela vai por aí, eu vou.
Mas insisto em outras ramagens cultivar o que o mundo se esqueceu.
São os buracos diários das ruas humanas.
E nessa contramão sigo eu, um lápis na mão,
Um nó na garganta, um desconsolo silenciado.
Ele roubou a padaria, disse que tinha fome,
E trabalho não tinha, mas não trabalhou duro no assalto?
Programou, pensou, agiu, foi rápido e teve êxito!
Deveria ser gerente de alguma indústria têxtil, oras...
Penso em como faria Jesus...
Ele também remava contra a maré.
Apesar de já ter velejado com uns homens bem pecadores,
O Deus dormia ali, naquele barquinho...
Aquele ladrão, além do pão, precisava de amor...
E Jesus navegava, outro dia:
-“Pedro, vem até mim por sobre as águas”...
Quem sabe, ao invés de gerente, o ex-ladrão pudesse ser pescador...
Como “ex”? Roubou há apenas dez minutos, e a única coisa que sabemos dele,
É que calça trinta e nove; deixou escapar suas chinelas velhas...
O que Ele faria em meu lugar?
Talvez o convidasse a pescar também, oferecendo-lhe uma peixada no jantar,
Em uma nova entrevista, como fizera com João, o discípulo amado...
Porque era amado?
Parece-me que entre tantos, Ele apreciava muito os ladrões,
É que a melhor estratégia ainda é o amor...