terça-feira, 23 de março de 2010

O Violinista




O Violinista


I

Essa é aquela fase do tempo quando se esfria e a estação desembarca um outono sobre os corações. Trata-se de um término de viagem entre nós, e o inverno está se aproximando com seu poder de nos trancar em casa e viver dias e noites perto da lareira, comer sopa e bolinho de chuva. O vento forte separa as folhas dos galhos secos a enfeitar as calçadas. As portas de madeira nas varandas resguardam um úmido aspecto escuro, que ao chegar à noite desaparece.
É uma época fria. Fria época de esquecimentos e lembranças, tudo o que vem e vai junto com a poeira levantada por tantas causas. Há rumores de uma grande tempestade, mas as velhas janelas, grandes, também amadeiradas, ao reproduzirem um pequeno ruído abafado por muros e vigas de concreto, denunciam um alarme falso e que a calmaria melancólica desse frio perpassa essas casas e está por aqui. À noite o sereno molha os telhados dessas casas, que pesam ter recebido uma chuva temporã.
É dia ainda. Existe uma velha praça na cidade frente ao “colégio dos padres” que pouco é freguentada. Os sapatos que costumam pisá-la são os que passam ocasionalmente por questão de trajeto. Foi assim que percebi que era ali um bom lugar para uma leitura. Compareci ao local numa tarde dessas com esse estranho e engraçado propósito, o de olhar palavras e suprir seus significados olho adentro. O frio estava implacável e somente me dei conta de qual romance escolhi para essa emboscada, no momento que me assentei no banco repleto de folhas. O colégio chamou-me atenção. Era como se ao me deparar ali, eu me tornasse um cavaleiro medieval, pronto para uma cruzada. Era um lugar misterioso. O colégio possuía um enorme pátio que se estendia até onde meus olhos não podiam mais alcançar, lembrava-me um castelo, e a sua frente havia um templo, uma capela. Realmente não sei o que havia ali, naquelas comportas. Tudo trancado. As vidraças da capela possuíam um colorido enegrecido, os detalhes da arquitetura falavam palavras religiosas. Histórias de monges, antiguidades não localizadas por mim.
As árvores de galhos secos da praça subiam até a extremidade da estrutura. Essa era cercada por grades de ferro, e ao final, por uma simples cerca de arames farpados. Possuía uma tintura desbotada pelo tempo, como tudo que a envolvia.
Um velhinho passou cortando a praça desviando-me de minhas observâncias. Trazia consigo um guarda-chuva e estava trajado todo de marrom, com um chapéu na cabeça. Examinou as horas num relógio de bolso, e a cada uns dez passos, parava para alimentar os pombos com migalhas que trazia em um saco de pães. Uma estátua de um provável religioso representante oficial do colégio recebeu a visita de um passarinho na cabeça, e recebia na careca umas bicadas, talvez para que a ave pegasse alguma semente que descia das árvores. Quando olhei de volta, o velhinho já estava longe, caminhando distante, apesar de lento.
Fazia-se já um fim de tarde acinzentado. O capim alto aos redores da praça deixavam-na assim, com uma aparência triste. Os postes de luz acendiam-se um a um enquanto resolvi assentar-me nas escadarias de fronte a capela. Percorri os olhos pelo prédio até suas maiores alturas. Olhei-o de uma perspectiva que o deixava maior do que realmente era, parecia que balançava pelos fortes ventos. O céu já feito noite compôs um receoso cenário, quase sombrio.
Quem já havia se assentado nessas escadarias? Quem pensou nos detalhes dessa arquitetura meio oca, meio barroca? Quem será que derramou gotas de suor ao trabalhar nessa construção? Por quais razões foram feitas preces debaixo desse teto? Questões demasiadas exageradas que não tinham respostas. Soavam-me como o mesmo que perguntar: quem apertou a tomada para ascender às luzes daqueles postes? Imaginei um homem velho e curvo a fazer esse trabalho em algum canto da cidade. Veio-me então ao pensamento o velhinho que passara a pouco alimentando os pombos. Seria ele o responsável pela praça? Pelos postes? Não sei. Sei que não pude ler uma linha sequer de meu romance em meio a essa cruzada.

II


Alguns pássaros cantarolavam numa manhã estendida e florida, com belas ramagens, como se fosse primavera. A bela orquestra natural encobria em mim, um pensamento infeliz, o de sentir nas estações um certo descompasso. É inegável admitir que hoje faz-se no inverno calor, e frio no verão. Há não tanto tempo atrás não era assim. Havia mais peixes no rio que atravessa a cidade, e ele era mais largo, parece que hoje se restringe a um riacho, miúdo, até umas crianças se arriscam a brincar ali. Na minha época de criança não. A gente respeitava o rio. Tínhamos um medo, e eu ficava às vezes a observar as garças, que livres eram felizes pelos ares a realizar a proeza de voar e pousar elegantemente em sua brancura, naquelas margens.
Tomei meu cavalo imaginário e continuei a cavalgar por uma floresta linda, contemplando um mundo perfeito. Cheguei ao final, num bosque cheio de encantos e comoventes paisagens naturais. Estava na verdade na esquina de minha casa. Os carros passavam baforando suas fumaças pelos ares, retirando um tijolo das minhas esperanças. Pude compreender em algumas partes assim, porque fui chamado de “visionário”, pelo delegado da comarca quando fui chamado a um julgamento para testemunhar um acidente que tinha visto.
- A justiça dos homens não é sempre justa meu caro! - segredou-me o promotor.
- É uma pena... – respondi.
Sinto ainda um ardente desejo de ajustar o mundo de suas perdas. Consertar os erros por acertos, com a contribuição de minhas unhas. Esquecer-me de mim, ouvir palavras de bocas caladas e conseguir percorrer a segunda milha. Sou miúdo, como hoje é, aquele que era um grande rio. Sei que sozinho não posso tudo, e que há resoluções que não cabem em minhas mãos, mas sei também, que de nada se pode desistir, apesar das más notícias que correm pelas ruas. Tento encontrar o fundamento. Aprendi esses dias atrás com umas formigas. Incansáveis, elas levavam sobre si, folhinhas amarelas. Havia uma fila muito grande delas, já era noite e elas ainda caminhavam em trabalho.
Entrei em minha casa ouvindo involuntariamente uma conversa de algumas vizinhas, que se demonstravam aliviadas porque a mãe do padeiro já estava melhor de saúde, estava adoentada.
- Graças a Deus, coitada, mulher tão bondosa! – Diziam as comadres.


III


Caminhava em uma noite. Minha alma necessitava de mais um passeio antes do início de mais uma semana de trabalho. Estava bem agasalhado. O tempo que fazia fez-me antes de sair, colocar uma blusa de lã por sobre meu paletó. Acheguei-me ao centro. Havia mais algumas pessoas na rua. Alguns a pé, de carro, famílias inteiras em restaurantes, uns namorados na praça e outros solitários. Eu era um desses. Quando menos imaginei, parei por um instante para apreciar a bela lua cheia. Estava ficando escondida por algumas nuvens. Dobrei a próxima esquina, era a rua da catedral. Imponente, tristemente bela, antiga, estava ali quem sabe há séculos, e eu como um tonto a observando como há poucos dias atrás observava o colégio.
A catedral dispensa maiores descrições. Muito mais alta que o colégio, é mais agradável aos olhos, no entanto, passou por mim um incômodo, como na outra cruzada. Essa já era noturna desde o princípio. Não havia livro, nem pombos, nem o velho, nem estatuas, bancos, somente alguns postes de luz em uma praça menor, de catedral. Nesse caso, o que mais atrai não são os apetrechos de uma praça, mas a própria catedral, e só ela. Não menos sombrio e religioso, o lugar era mais lúcido, mais lúdico, lírico, afável, contrário. Era grandioso, e vi aos fundos, por uma fresta de janela, uma luz acesa. Saí da frente da grande porta, essa era maior do que a do colégio, onde por certo, saíram muitos e muitos noivos para luas de mel. Saíram pessoas tristes por lembranças diversas, gente feliz, gente com fé. Dei a volta. Aos fundos, cheguei com o pensamento de querer entrar ali, romper esse novo mistério, não fazer como da outra vez. Mas, seria eu louco o suficiente para arrombar uma igreja á noite, apenas para satisfazer minha fobia inexplicável de querer conhecer as coisas, e justamente num horário que não correspondia com a normalidade?
Foi nesse momento que recebi um grande susto. A porta dos fundos fora aberta rapidamente. Um velho com cara de sono me indagou com tom de voz severa:
- Quem é você senhor?
- Olá...ehh, boa noite senhor!
- Boa noite, não respondeu minha pergunta.
- Perdoe-me, me chamo Paulo. É que passava e intriguei-me com a catedral.
- Há, sim...
Meus parafusos, cérebro de gente distraída, logo percebeu para minha surpresa que se tratava do velhinho da outra cruzada, do colégio, o mesmo que alimentava os pombos com migalhas, naquela inútil tarde de contemplação.
Agora, examinou o mesmo relógio de bolso, advertindo-me:
- Veja rapaz, já são vinte para as onze da noite ...
Não sei ao certo se o velhinho me disse isso com o intuito de me despedir. O que me veio no momento foram vozes de desocupações. Para que observar? Para que ocupar-se assim, com leituras, lua cheia, preocupações com as estações, um colégio velho e abandonado, incomodar um pobre ancião? Tal reflexão foi rápida, pois o velhinho pediu-me:
- Entre então rapaz, nunca entrou aqui?
- Não senhor...
- Tá precisando rezar mais heim! Entre.
Entrei acompanhando-o pela porta que era a ligação do pátio para uma saleta de repouso.
- Costumo fazer minhas orações em casa mesmo - respondi, acredito que Deus criou o universo, a terra, a lua. Não entendo só esse negócio de São Jorge estar lá, montado num cavalo branco, com uma espada nas mãos.
Assentando-se num sofá continuou meu anfitrião:
- Sabe filho, eu também não entendo muita coisa, não sei muita coisa, mas estou aqui. Há vinte e seis anos essa é minha casa. Cuido desse lugar como uma mãe cuida de seu bebê.
O velho parou por um instante com o olhar cravado em uma fotografia em preto e branco, que ficava em cima de uma cômoda em verniz. Assentei-me também na esperança de ouvir dele algumas histórias.


IV

Não as pedi por palavra, vieram algumas:
- Paulo, está vendo esta mulher?- Disse mostrando-me a fotografia. É minha esposa, ela me deixou há vinte e seis anos. Nós nos casamos aqui. Depois de sua partida, fui convidado a trabalhar aqui, estava quase aposentando-me e aceitei. Sabe, eu a amei muito. E amo. O amor não morre, você sabia?
- Creio que sim, senhor.
Os olhos dele brilharam. E logo despontou-lhe um sorriso no rosto, dizendo-me:
- Fomos felizes. Lembro-me de quando a conheci, quando a vi pela primeira vez. Ela era uma moçoila, eu um rapazote. Ela passava com os pais e sua irmã mais velha por uma rua de travessa, onde acontecia um desfile, por ocasião de aniversario da cidade. Estava linda. Usava um vestido claro e um chapeuzinho que lhe deixava o rosto ainda mais delicado. Em um momento olhou para mim. Eu passava entre as pessoas para ir embora. Fui, mas levei comigo aquele olhar. Olhar de amor, longo e profundo. Desde aquele dia, eu a amo para sempre.
Um instante de silêncio acorreu enquanto ele observava na fotografia a esposa. Aquela observação profunda parecia uma continuação daquele primeiro olhar de amor que ele ganhara dela. O silêncio estendeu-se mais um pouco, e tive assim tempo para me lembrar que o homem já me havia chamado pelo nome, contara-me coisas de seu coração, e eu, desligado, pela vagabundez de minha memória, ainda não havia lhe perguntado o nome. Ousei interrompê-lo:
- O senhor ...
- Desculpe, o que foi Paulo?
- Eu que lhe peço desculpas, como o senhor se chama mesmo?
- Bernardo de Campos.
- Realmente o senhor a ama muito Sr. Bernardo.
- É sim. Bom, não quer conhecer mais a dentro?
- Claro que sim.
Sentia ali o estupor de romper aquele mistério.
Saímos da sala e adentramos outra maior. Passamos por um corredor e entramos por um enorme vão que dava para o centro da catedral. Obtive uma ampla visão. No silêncio daquele escuro, ouvia cantos gregorianos, altos e uma aguda reverência apoderou-se de mim. Deus estava ali, Bernardo e eu.
O altar era lindíssimo, os vitrais diziam em cacos coloridos, palavras que guardei alma adentro. Bernardo havia acendido poucos lustres. Como o interior do lugar fosse enorme, os lustres não davam conta de suprir toda aquela escuridão e umas luzes a frente do altar faiscavam em destaque, comportadas em um castiçal de sete velas. Sem a presença de pessoas, quase eu diria que o ambiente ficara medonho, quase fúnebre, e me importei em pensamento, enquanto lentamente caminhávamos, com o pobre Bernardo vivendo ali.
Agora o que me fazia pensar eram os grossos pilares, de tamanhos impressionantes que se encontravam nas alturas e se abraçavam ao redor da cúpula. Lá em cima, distante, ela era vista em formas diversas, divergindo a visão conforme a posição em que se olhava. Divergência essa que confundia, deveria ter sido projetada por um exímio artista de arquitetura, que quando desempenhara essa arte devia estar passando por algum grande sofrimento.
Após muito silêncio, quando já estávamos ao lado oposto do grande vão por onde entramos, avistei a porta grande, de entrada, a que por onde entram e saem os noivos, as pessoas todas, o velho Bernardo, que me perguntou:
- Quer subir e ver de perto onde fica o sino?
Aceitei e fomos pelo corredor paralelo ao outro que á frente se escondia por detrás do altar. Subimos por muitos degraus, cada um como uma vértebra de um enorme corpo.
Algo em minha alma fazia-se deslocado, obscuro, mas essa não era necessariamente uma sensação ruim, apenas não localizada.
- Veja Paulo – apresentou-me com uma face de contentamento, como quem guarda um segredo- esse ó coração da catedral.
Realmente era um belo segredo, pois sempre ouvira o tocar do sino da catedral sem vê-lo e em horas que sequer quisera ouvir, e agora estava eu vendo-o sem ouvir dele som algum.
De um lance contemplei das alturas as luzes da cidade que lá embaixo piscavam, por um momento parecia estar mais próximo das estrelas do que do chão, claro, não era verdade, demoramo-nos mais um tempo. Como o velho percebeu que eu havia ficado muito entretido naquele ponto, ele desceu primeiro e eu fiquei por mais um tempo sozinho.

V


Depois desci e vi Bernardo assentado num dos últimos bancos da nave. Irrompeu meu silêncio:
- Jovem Paulo, sabias que aqui não estou só? Agora mesmo antes de você chegar, estava fazendo uma prece, e sinto que meu anjo está aqui, ao meu lado nesse banco e me acompanha por onde vou. Sabe, gosto muito do seu nome, me faz lembrar o apóstolo, que como eu não estava sozinho em certos momentos que parecia estar.
- Por certo Sr.Bernardo- concordei com ele admirado e compadecido, em meio a minha incredulidade em comparação a grande fé que possuía o velho.
-Venha pra cá Paulo, quero te mostrar outra coisa.
Voltamos à primeira sala e Bernardo puxou um baú que estava num canto inferior de uma estante. Abriu-o e retirou de dentro um violino. Parecia que o instrumento estava muito bem cuidado, coisas de quem guarda com amor, relíquias que com o passar do tempo constituem e matem o mesmo significado de sempre.
- O senhor toca?
- Gosto muito... ganhei-o de meu pai, Maria Lúcia gostava muito de me ouvir tocar.
Saíram assim de Bernardo e do violino, uma bela melodia. Triste, como é geralmente o som desse instrumento, no entanto, nas mãos dele, as notas pareciam-me dizer, anunciar, confortar, em notas que viravam palavras. Menores, que faziam-se em mim grandes, sustenidas que não sei como me sustentaram naquela noite.
- Sabe Paulo, essas notas tem me aliviado há anos, são minhas amigas, a música tem o dom de calar e falar ao mesmo tempo. E precisava lhe dizer, quando você desceu lá do sino, além da prece, eu comigo imaginava um aprendizado que você me ajudou a ter: templos são como corações.
Fiquei não sei se mais constrangido ou feliz por essa palavra, e ainda intrigado com ela.
- Obrigado Sr. Bernardo, mas o senhor é que me ajudou hoje. Ele me abraçou com o mesmo carinho que fazem os avôs.
Nem duas semanas haviam se passado e eu estava com muita vontade de ir fazer agora uma visita ao Bernardo, pois o conhecia e não seria ali levado por outra coisa a não ser pela vontade de revê-lo, quem sabe ouvir mais uma vez suas melodias.
Antes de me preparar, no entanto, para numa noite dessas ir visitá-lo, no fim de tarde desse mesmo dia passei numa banca de jornal para ler alguma coisa. Para encurtar esse momento triste desse meu testemunho, li no jornal várias coisas e sem alguma pretensão entre elas, nas últimas páginas a nota de falecimento, e constara ali o nome dele “Sr. Bernardo de Campos que era viúvo de Dna. Maria Lúcia de Campos, não tiveram filhos”. Falecera no dia anterior.
Não me consta do que foi. Não me recordo para ser sincero, pois quando vi ali o seu nome, esqueci do resto e chorei. Deve ter sido a velhice. Na verdade isso não é o que mais me importava. Tentei me lembrar naquele momento de outras coisas, como as que me lembro agora, a voz do velho Bernardo me comparando com o grande apóstolo Paulo, os ensinamentos daquela noite. Lembrei-me do jeito como olhava a mulher no retrato e do novo conceito de música que aprendi pelas notas do violino.
Descobri algo novo dele. Não me dissera que não tiveram filhos. Até assim ele me ensinou, que os frutos do amor sobrevivem e existem sem mesmo outra criatura surgir de duas primeiras. Agora eu é que faço uma comparação: Já li sobre a história de *Inês de Castro e Dom Pedro, um amor além da vida, enterrados próximos, para ressurgirem juntos, no dia da final ressurreição. Maria Lúcia e Bernardo estavam assim agora, nessa mesma condição. Se não conhecidos na história, cravados pelo menos para sempre na minha, através de um belíssimo ensinamento dele, o amor não morre.

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