terça-feira, 23 de março de 2010
A Força da Vida
A força da vida
I - O andar dos dias
Pelas altas montanhas na antiga Itália, em rudimentares e memoráveis dias medievais, a vida transcorria pacata e aventureira. Os ruídos das espadas afinadas em batalha, estavam a cada dia silenciando-se, comunicando assim um tempo diferente, uma nova fase da história do mundo. Não tão nova fase, talvez apenas uma visão, afinal as guerras continuariam incondicionais e constantes, antes com cavalos e depois com aviões. O certo é que elas persistiriam pelos séculos da existência humana.
Por entre bosques de belos arvoredos que esverdeavam por baixo a terra, em uma distinta harmonia de cores, com o céu de um azul carregado e belíssimo, os camponeses do vilarejo de Vinci na Toscana, margeado pelo rio Arno, trabalhavam contentes na sua lida diária.
Os afazeres dos homens eram mais nutridos de coragem e força, dispostos e pioneiros, na lavoura, no trato com os animais, nas trilhas das tardes todas, solitários, entre amigos, iam, robustos e sonhadores. As mulheres no seio da sua hereditariedade cuidavam dedicadamente da parte que lhes cabiam, entre lenhas e linhas, frutos, leites e aparatos artesanais. Teciam ainda outros serviços, resmungando alguma cantiga.
Catarina era uma dessas mulheres desprendidas e abnegadas, que possuía em seu ser, toda a força contida em uma flor. Em uma noite chuvosa, ela aguardava o marido chegar da cidade, que não muito distante, trabalhava como notório na casa de um certo Sr. Cassiano Alviero, proprietário de grandes posses na Florença.
Ela ficava mais ansiosa a cada vento que soprasse à sua janela, cada um demarcava um segundo adicional na demora de Piero, que não tinha por costume atrasar-se para chegar a sua casa. Catarina estava na sala da choupana, cosendo alguma coisa para poder vender às vizinhas, enquanto seu filho Leonardo, fechado em seu quarto, rabiscava um desenho numa folha avulsa.
Como o filho fazia grande silêncio, Catarina levantou-se para averiguar se estava tudo bem com o garoto. Chegou à porta, abriu-a e por alguns segundos observava-o em sua cadeira junto à janela, ainda com a pena na mão esquerda. Os únicos ruídos emitidos do quarto, era a profunda respiração do menino e o passar ligeiro, às vezes lento, de seu punho sobre a mesa. Após um instante, perguntou-lhe a mãe:
- Léo, tudo bem com você filho?
Como estava num misto de concentração e distração, pela repentina aparição da mulher, respondeu assustado:
-Tudo mãe, tudo bem...
-O que está fazendo?
-Um desenho.
- De quê?
-De um anjo e uma criança...
-Hum...deve estar lindo, posso ver?
-Ah mãe, só depois que eu terminar, pode ser?
-Pode...
-E o papai não chegou ainda?
Como se ele adivinhasse, o ruído dos cascos de um cavalo fez-se ouvir ao lado de fora da varanda.
-Deve ser ele chegando agora filho, deixa abrir-lhe a porta.
Piero adentrou a sala todo ensopado da torrencial chuva que caía. Deu um beijo na esposa que o recebeu com meiguice, retirou a capa e as botas encharcadas e assentou-se num banco de madeira, que ficava ao lado da porta que era entrada para o quarto do casal, mas ainda na sala.
- Que chuva mulher, será outro dilúvio? O Pangaré escorregou no caminho, enquanto trotava forte no meio da estrada, quase caí de cima...
-Ô homem, estava tão preocupada com você! Graças a Deus você está são e salvo...
O motivo óbvio pelo atraso dele, fora justamente esse temporal, que não cansava de se derramar pela vastidão das campinas que contornavam toda vila.
-E o Léo?
-Tá no quarto desenhando.
-Como sempre...
-Não sei, ele anda tão diferente ultimamente, tão quieto...
-Como você disse, você não sabe... Não deve ser nada de mais, ele é um adolescente não é? Deve estar preocupado com alguma coisa, bobagem...
-Espero...
II – O desenho
Preocupação de pai e mãe é como um jornal, após um processo de várias informações, dá-se a cada dia.
Catarina e Piero foram dormir nessa noite cuja tormenta aguada e ruidosa, não cessava de gritar no forro da choupana. Antes, ao irem desejar ao filho uma boa noite, viram-no debruçado sobre sua mesa, dormindo com o rosto sobre a folha que estava desenhando.
O primeiro impulso do pai fora o de tomá-lo aos braços e carrega-lo até a cama.
-Espere Piero...
-Que há mulher...
-Não o leve até a cama.
-Porque não?
-Eu pedi a ele para que me mostrasse esse desenho aí, e ele não o quis. Se você tirá-lo daí, vai pensar que fui eu quem o tirou, e por conseqüência vai pensar que bisbilhotei o desenho, que não queria que eu visse antes dele aprontá-lo...
-Ora mulher, eu o coloca na cama e você não olha o desenho. Amanhã se preciso, dizemos isso.
Ao que parece, Catarina observou isso, justamente porque estava muito curiosa para ver o desenho do filho, afinal, lembrara-se que ele lhe tinha dito certa fez, que o desenho era uma forma de externar, o que existe dentro daquele que o fez. Como há dias, o incômodo pensamento que o filho estava realmente calado e com os comportamentos mudados atormentavam o seu materno coração, pensara na possibilidade de ver no desenho, algum indício, que pudesse revelar ao menos qualquer detalhe do seu interior. No exato momento em que seu marido, com muito cuidado para não o acordar, tomou-o ao peito, aproximou-se sem que ele percebesse com três passos da mesa. Olhou rapidamente e fixou aos olhos aquela imagem.
Saíram do quarto em silêncio, e foram para o seu repousar. Piero por estar num sono forte que logo o derrubaria como uma pedra lançada ao mar, não pôde devido a isso, contemplar os olhos brilhantes de lágrimas que fluíram na face da esposa ao saírem do quarto do filho.
A angústia que afligia aquela mãe, no mínimo dobrou em proporção ao que lhe estava na alma. Pensou que não devia ter olhado o desenho que o filho fazia, pois assim ele o pedira. Mas a razão preponderante para que se agravasse sua angústia, não era a de simplesmente ter olhado o desenho, mas a de ter olhado e visto não um anjo e uma criança como Leonardo o dissera.
O que havia na folha era uma linda caricatura extremamente rica de detalhes do rosto de uma mulher. E para completar o enigma, havia ao lado do desenho, um papelzinho como de rascunho, cujas letras que o compunham diziam em uma frase: “La Forza della Vita.”
Por certo quem olhar por alto tal situação, irá imaginar que Catarina fosse uma mulher exagerada e que ainda não respeitava aquilo que o filho lhe pedira. Esse é um lado da moeda. O outro que é contornado por um coração de mãe, pensa de outra maneira, e não apenas pensa, mas pergunta dentro de si:
Quem é essa mulher? Por que “La Forza della Vita?” Por que ele disse que desenhara uma coisa e na verdade era outra? Por que meu filho mentiu para mim?
III – Tristeza
Catarina dormira muito mal naquela noite. Tentou, entretanto, não demonstrar ao filho e ao marido que não estava bem e que andava muito incomodada.
Leonardo não desconfiou que sua mãe, havia visto a caricatura que fizera na véspera. Saiu de casa para ir ao colégio e levou consigo além dos materiais cotidianos de uso de um jovem de 14 anos, alguns aparatos que sua vida de artista desastrado costuma carregar. Em plena juventude, o rapaz já teria tido algumas experiências mordazes, o que de fato o fazia pensar, desenhar e pensar mais um pouco. O que mais era razão de um determinado descontrole emocional, e que o fazia estar angustiado como sua mãe, mas de uma outra maneira, era de certa forma, pela mesma causa. A caricatura. Para a mãe era a caricatura, e o que ela poderia significar. Haveria uma mulher real para um menino de 14 anos?
Para ele, a desventura; era a de estar apaixonado pela menina que desfigurou seu coração. A menina que há alguns tempos também o incomodava todas as noites, acordado ou nos sonhos, com o seu olhar fatal, derradeiro e simplesmente maravilhoso, indizível. A menina que via todos os dias no colégio, e que naquela noite, ele copiou do seu coração em uma folha, a imagem do rosto dela, incrustada em seu ser, pintada com as cores do amor.
“Giuliana. Como dizer-te de meu amor por ti”?
Essa era sua angústia e tristeza. Dessa forma é que ele foi, carregando dentro da bolsa, a caricatura para entregá-la de presente à moça, em algum momento em que ela se achasse sozinha, afinal, seria mais fácil, um presente e uma declaração ao mesmo tempo. Se precisasse, ele pensara improvisar alguma palavra, senão, apenas o presente.
E de fato, Catarina sem saber tinha razão. Tratava-se de uma obra lindíssima, e de difícil descrição. Um desenho raro para um jovem de sua idade, com uma genialidade ímpar, composta por alguém que ia além das coisas superficiais. Uma obra prima que fazia ecoar aos olhos e aos sentidos, mais que uma nova arte, a transfiguração extrema do que já não podia caber dentro dele.
Cabe aqui ressaltar outra tristeza. Essa dolorida forma de amar, não representava ao jovem sua única via de sofrimento, que o fazia por vezes, viver num silêncio inexplicável. A real explicação que ele escondia em um outro silêncio era essa: Leonardo era visto em seus meios de relacionamentos, que não eram muitos, como um menino um tanto diferente dos outros. Ele não entendia a princípio, alguns olhares que a ele eram estranhamente lançados. Desde pequeno os outros companheiros de escola e do vilarejo diziam-lhe que ele parecia ser mais uma menina, com seu jeito. Uma menina. E mexiam muito com ele, e em muito, sem verem, faziam-no chorar, ofendendo-o com nomes dolosos, que ele sequer compreendia. Mais tarde, quando mais crescido, Leonardo conseguiu entender tudo o que diziam dele. E pensava que todos estavam enganados, afinal de contas, o primeiro amor que tivera, que era justamente por Giuliana, desmentia a todos. Sentia algo muito forte por uma menina, o que comprovava que ele era um menino como outro qualquer. Isso o tornava calado, sozinho muitas vezes. Não que não tivesse amigos, mas sofria quando alguém lhe lançava uns juízos desses.
Sobre isso, pensava ainda em permanecer como estava, em silêncio. Se ele possuía sua verdade interior, para quê tentar provar aos outros alguma coisa, parecendo estar assim em um estado de dívida? Estabeleceu-se assim, pondo em risco sua jovial integridade, por respeito à própria consciência, que queria estar em paz, e agora essa lhe pedia algo urgente: “Entregue logo esse presente a Giuliana!”. Isso lhe trazia alegria, ainda que, com a barriga gelada, como escorregando no tobogã da paixão, sinuoso, frio e inesperado...
O dia de aula estava a despedir-se e Leonardo pensou que teria de voltar para casa com o presente, e deixar para outra data o dia dessa revelação de amor, pelos traços de uma pena. Haveria ela de gostar? O sino anunciou a saída, quando ele ainda refletia na reação que teria a moça, e ainda questionava se sua coragem era suficiente para chegar ao campo da atitude. Pensamentos, ansiedades, e todas as demais ocorrências ficariam para o dia seguinte.
Mas como o inesperado faz jus ao seu nome, e obedece friamente em seu significado o prefixo que modifica num segundo as situações, o rapaz não voltou para casa com a caricatura. Por um corredor pouco movimentado àquela hora, um vespertino acaso o colocou frente à moça, que se assustou ao vê-lo de relance. Haviam virado juntos a mesma parede que possuía dois acessos, e quase se trombaram.
Não sabia se saía em disparada ou se abria um buraco no vento, onde soprasse por uma fresta, longe dali. De súbito, numa quase convulsão de nervos, ao olhar mais para o chão que para a moça, retirando da bolsa o presente, disse-lhe:
-Giuliana, isso é para você...
- O quê?
- Aceite, vem do fundo do meu coração!
Com uma impressionante frieza e impiedade, ao olhar por um segundo a caricatura, a moça desfez aquele papel manchado pelo amor, em mil pedaços despencados ao chão.
Ela deu por costas, e sumiu a passos largos pelo corredor. Leonardo permaneceu estático no mesmo canto, deixando rolar na face umas lágrimas insistentes; enquanto os lindos olhos azuis, o observavam do chão, caprichosamente rasgado das outras partes picadas que formavam a face dela.
IV – Bucolismo
Alguns dias haviam se passado, e o rapaz possuía dentro do peito o coração como havia ficado aquela sua arte. Em tantos pedaços estava, que já não era possível uma reconstrução, uma busca que recomporia as partes desligadas. Uma vez rompida, rompida para sempre, pensava, e indubitavelmente esse era o temor a respeito do seu próprio ser.
A atitude da jovem lhe era monstruosa. Esse novo incômodo do filho, por vezes fazia Catarina observar-lo à distância, a pensar o que haveria de ser. Solitário, ele permanecia tardes inteiras, junto a um pedaço de cerca que existia ao lado do rio, tocando sua flauta doce. Enquanto de sua casa a mãe o via, numa atmosfera de tristeza, não sabia se ele passava por uma contemplação natural, ou uma reflexão existencial.
Tudo era a mesma coisa. As águas que corriam confundiam-se com sua melodia. Os pensamentos da tarde eram como os pássaros que voavam para outro lugar muito distante, algum retiro de luz, e campos que esverdeavam em uma serena paz, onde pudesse encontrar o que o seu quintal deixara-lhe de proporcionar. Por dias esteve assim. Sua maior companheira depois da flauta era uma ovelha que pastava ao seu lado, em algumas caminhadas que fazia pelos campos. Ela sempre o acompanhava naquelas margens, nos seus momentos de fluência, entre nuvens, arbustos e infinitos pensamentos.
Não deveria ser realmente um rapaz diferente?
Giuliana via-o todos os dias na mesma sala. Não trocaram mais que dois ou três breves diálogos durante um ano inteiro, ainda assim, amava-a independentemente se fossem duas ou duzentas prosas. E ao findar desse período, esse insignificante conhecimento, fora coroado com esse incidente trágico para ele. Provavelmente, se fosse uma outra menina, se fosse alguém que não estava marcada pelo teimoso olhar abobado de quem sente forte o coração ao vê-la, talvez fosse diferente.
Muito certo seria, que a outra ao ver a caricatura, sentiria o maior elogio não verbal possível. Sentiria fatalmente a declaração clara de quem a perscrutara em resquícios, nos detalhes mais ínfimos, que descrevessem um traço facial. Reconheceria em todos esses mínimos atributos, uma sinceridade velada, traduzida num assombroso conhecimento. Seria como olhar num espelho, além do concreto, o espelho da alma.
Mas se não houvesse o amor, não haveria razão de ter a caricatura sua existência, ou seja, o risco de entregá-la foi necessário para se colocar a prova o que se haveria de ocorrer. Com certeza, a outra deveria ficar vermelha pela quase afronta, mas seria tão boa, que ao menos agradeceria. E mais, se fosse ela mais atrevida que graciosa, o agradecimento viria através de um beijo.
O que não ocorrera no caso, fora a existência de tal complacência ao autor. A suposta e benévola moça imaginaria além de agradecer, quem sabe com a sorte citada, também percorreria um pouco mais em demora, os olhos sobre ele, e enxergaria um rapaz formidável, realmente diferente dos demais. O desastre pelo que se nota, dá-se ao fato da outra não ter recebido o presente, sequer ela existiu. A suicida fora Giuliana, de carne e osso, coração de pedra, e olhos lindíssimos azuis, essa sim existia.
A desgraça da paixão deu-se as caras por uma clara razão no coração dessa louca. Ela não pôde ver alguém tão bom e casto que a (outra) vira. Não era formidável, e isso lhe era completamente coerente e explicável:
Para um início convincente de explicação, e provar seus pensamentos e atitude sobre ele, seria necessária a resposta afirmativa para essa pergunta, se por um milagre ele tivesse uma remota chance: Trata-se de um rapaz normal? Ou seja, qual é a moça que por mais feia ou bonita, gostaria de achar-se ligada intimamente com um ser estranho?
Ela o achava assim. Não pelo senso comum que o recriminava de forma injusta, mas encontrou para si, razões peculiares para achá-lo um tanto repugnante. O silêncio tão inerente a ele, denotado virtude para muitos, soou para ela como uma falta de capacidade muito grande, como um menino franzino, quietinho, sem jeito, sem futuro, sem condições, sem aptidões, sem gosto, sem amigos e sem graça. Ele era um tanto desengonçado pelas vezes que o notara, por conseguinte, o achou também sem beleza. E que menina comunicativa, de tratos mais refinados, que não morasse numa vila como a da Vinci, e que possuísse um lindíssimo e desejável par de olhos azuis, namoraria um “estrambólico”?
E o pior de tudo, era canhoto. Cuidava ela como sua avó dizia que devido a isso, ele deveria ser um enviado do diabo, e para completar, tinha um enorme nariz feio e torto.
V – Coração Medieval
Registros como esses, não devem ser comuns e o são por tantas causas, que acabam confundindo os verbos do que consideramos corriqueiro.
O que tudo quer dizer, é que o futuro aconteceu para o jovem artista, com sua misteriosa maneira de silenciar-se, e gritar por formas escorridas em muitas e muitas telas. Cresceu considerando a vida e a natureza, grandes fontes de aprendizado, por onde transcorreria sua perfeita visão de abstrair o mortuário e torná-lo gesto de viver.
Exatamente no futuro de Leonardo, o vemos em suspiros de vida, calcando os pés o ano de 1511, olhando para trás, onde deixara sua juventude, em dias distantes desse novo século. O vemos deixando também, o vilarejo da Vinci, sua flauta, sua ovelha amiga, e os saudosos pais que morreriam, deixando-o com muita saudade. Deixou também lá atrás, nos dias da adolescência, o velho Verrocchio em seu ateliê, onde aprendeu com esse mestre muitas técnicas, muitos detalhes e alguns segredos. Trouxe esse homem pelos anos, guardando-o como uma velha pintura inacabada, como também deixara outras artes pelo caminho, não querendo terminar nunca o que ele considerava não caber no tempo. Coisas impronunciáveis, e as aceitava como dignas de uma eterna contemplação, portanto inacabáveis.
É justo que tantas vezes ele o fez. Tentou colocar na arte da existência, cenários e significados que julgava não poder exprimir em sua totalidade, a riqueza e a grandeza. Esse pensamento ia e vinha com o tempo, e por vezes variavam. Um caso de expressão, que considerava infinda, que ousou com séria ventura compreender em uma bela e grande moldura, fora a “Última Ceia”. Tanto lhe incomodava o pensamento das vezes que refletira no sagrado e no profano, que decidiu pintar o momento que tumultuava o seu coração, quando em sua tristeza, tentava suprimir a tristeza do Senhor. Interpretou o instante que Ele anunciara a todos a eminente e cruel traição que lhe aconteceria. Aquela cena de alvoroço pela notícia dada, era a comunicação do terror que se daria ao verem o Cristo brevemente crucificado, ainda ao desconhecerem o que seria por completo. Era o registro barroco. O alvo e o escuro encontraram-se ali. Uma estranha dualidade, que anunciava em uma única beleza, dois lados opostos: O eterno intento do criador pelos simbólicos gestos da ceia, que haveria de ser perdurada por entre a eternidade, numa memória interminável de amor não consumado; e a tentativa maléfica e cega do Judas de enganar O que se não pode enganar, e sua lança de preciptação diante dos outros onze discípulos. A turba era predita, o enforcamento do infeliz se daria, e o que antecedia tudo isto, era aquela mesma sala, com Jesus e apenas onze e não mais doze homens.
. Leonardo traduziu esse momento em uma tela, e julgava que se quisesse traduzir em sua completude, tudo o que ele podia dizer, precisaria de mais algumas delas. É dispensável dizer que tal descrição é insuficiente para convencer o vil conceito humano, de achar chifres nas cabeças dos cavalos, pois pensam poder compreender tudo o que um artista quer dizer. Esta é a diferença contundente. O que foi lançado aqui, foi o pensar devidamente informado sobre o autor, e não apenas meras e possíveis interpretações, passivas de serem taxadas como idiotas. Nunca que fosse a curiosidade, algo que chegasse à beira da estupidez, mas o contrário, ela é um tanto saudável; no entanto, o falso método de comprovação, jaz mergulhado nas águas da ignorância.
Tal obra foi aqui descrita para garantir pelas limitadas, porém, profundas intenções do artista, que nem sempre sua arte é uma fonte de mentiras, dúvidas e enigmas. Às vezes eles existem, mas não com os tolos propósitos criados pela inútil modernidade, que enganosamente acredita ser onisciente.
O que ternamente comprova isso em uma sutil revelação de alivio e felicidade, são os puros olhos da mãe Catarina que brilharam, há tantos anos atrás. Em um daqueles dias em que seu filho estava extremamente silenciado, intentou entrar em seu quarto, para dar mais uma olhadinha em algum desenho. Para sua surpresa, a caricatura da “mulher” não estava mais por ali, mas ao abrir uma das gavetas da mesa, encontrou um novo desenho. Um belo anjo com asas enormes, que segurava uma criança pelas mãos; numa paisagem campestre, entre um azul celeste e nuvens claríssimas. Eis a sinceridade do artista, que jamais enganara sua mãe.
Ele não costumava, por onde passava; pregar tais idéias inférteis, os julgamentos eternos e malvados da humanidade. Não usava a arte por roubo, e há indícios que ele realmente não estava preparado para viver o tempo do modernismo que se daria à luz. Nunca estaria. Sua vida pedia ares de dias sinceros, coisas que entendem somente quem viveu em dias antológicos, e que inspiravam amor e arte real. O coração dele não era moderno, era antigo mesmo; tingido de pasta de abacate com banana, como em suas artes clássicas. O coração dele era medieval.
VI – Uma face escondida do Renascimento
Das cavalarias apenas lembranças. Quadros de recordações foram produzidos, repletos de saudades e antigas observações, postas amostra. Silêncios indecifráveis, que com toda certeza, servirão de objeto de estudo, para quem um dia irá tomar uma conclusão maluca e desnorteada, do que pensam ser superficial. É assim que imaginam decifrar os enlaces de um gênio.
Leonardo vivera perscrutando o oculto de cada sombra. Costurava remendos imaginários e tecia-os com a singularidade do sol para esse sistema solar. Calado, sem explicar-se, tornou milhões de outras pessoas dessa forma, quando em outros tempos, contemplavam sua matéria em algum museu do mundo.
Percorreu alguns cantos dele. Discorreu sobre suas tantas teorias difundidas, que podia paralisar alguns pensadores. Explicar em poucas linhas sobre suas atividades anatômicas, mecânicas e químicas não pode ser possível. Sua poesia, música, arquitetura, teoremas matemáticos e físicos pedem alguns séculos de analise minuciosa entre gerações inteiras, e resumi-los é incabível, assim como um navio não pode caber dentro de um copo d’água. Enfim, é muito inútil olhar por alto algumas coisas. O diagrama científico de Leonardo insere no intelecto humano, informações geniosas, coisas complexas demais para pessoas arrogantes, que pensam saber tudo, e que desprezam o contínuo aprendizado. Nos dias dele, essas duvidariam da hipótese que ele lançara de um possível helicóptero, ou mesmo o uso da energia solar, ou da rudimentar tese a respeito das placas tectônicas. Deixa, existe muito ainda do que se poderia falar e não o foi, talvez um enciumado modernista da atualidade desmentisse a verdade, e creditaria um valor inestimável a alguma coisa mais inútil que as críticas enganosas.
Para esses, pode-se deixar um conselho singular de mais uma teoria dele: “Que o teu orgulho e objetivo consistam em pôr no teu trabalho algo que se assemelhe a um milagre”. É evidente que nesse caso, alguns prefeririam e preferem deixar o trabalho de lado, alegando um grave problema de saúde ou outro qualquer.
Sim. Verdadeiramente, há tempos atrás uma linda moçinha loira de 15 anos, de olhos azuis lindíssimos, metida e fresquinha, tinha razão. Ele não era um rapaz normal!
Tão anormal que desde aqueles tempos era vegetariano, adepto a um regime alimentar que dispensasse os finos manjares, deliciosos e nojentos, que a maioria dos seus contemporâneos prestigiavam. Filósofo desde a tenra idade, não poderia ser como os meninos que Giuliana certamente valorizava.
Quando já podia ter o seu próprio sustento, geralmente não desperdiçava nada com utensílios e coisas banais. Afinal, era inteligente. Usava boa parte do que ganhava para comprar passarinhos engaiolados, para os libertarem; fazia isso com outros animais de maior porte também. Como alcançar tal estágio de favor benéfico? E ele sempre tinha alguma coisa com o que presentear a velha Catarina e o velho Piero. Eram coisas simples; uma cadeira nova, um guardanapo bordado, uma ferramenta para o pai, um chapéu ou um quadro que fazia alusão a alguma coisa do gosto deles.
Coisas e coisas. Que compreendem aqueles que de tanto inspirar-se num alvo digno, sopraram por todos os lados a brisa fantástica da transpiração que paralisa os sentidos; e depois os move, por uma direção subjetiva e concreta ao mesmo tempo. É que a sua arte possuía esse ambíguo caráter, de aliviar e provocar, de maravilhar e assombrar. De comunicar e de esconder. Deve ser por razões como essas que, contemplamos testemunhos sobre ele que relatam: “De tempos em tempos, o Céu nos envia alguém que não é apenas humano, mas também divino, de modo que através do seu espírito e da superioridade de sua inteligência, possamos atingir o céu”.
A genialidade é assim. Não, ele não era um anjo; e como vistes, seu amor foi espantosamente negado. Há o relato, de que após o evento da moça dos olhos azuis lindíssimos, ele tenha desistido para o resto da vida, de um eventual novo amor; e por esse tempo para traduzir sua luta interior tenha pintado “Batalha de Anghiari”.
O concreto é que da vida jamais desistira, era apaixonado por ela, ainda que o tempo que o descreve como gênio não tenha compreendido o que de mais superior nela existia. O feudalismo ia-se para dar o seu lugar ao capitalismo. As mudanças extraordinárias nas ciências, artes e filosofias demarcavam a supremacia desse tempo sensacional. Tudo sensacional. Ainda hoje, há provas que daqueles dias o homem não descobriu o essencial, daqueles e de todos os tempos. O essencial que Leonardo da Vinci dizia em todas as suas artes.
Como todo gênio, um dia ele também se foi. Mas, deixemo-lo em sua magnitude, vivo na memória; reunindo o povo em alguma praça na Florença, expondo seus preciosos tratados, com sua imortal arte, e sua lira que fizera, para tocar suas melodias. Lá ele dizia, coisas que eram mais que palavras; mas infelizmente para os modernistas, as muitas interpretações que fazem para “Monalisa”, estão todas completamente equivocadas.
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