sexta-feira, 26 de março de 2010

Zé do Lixo




Imagine um senhor robusto de meia estatura, mais velho que jovem, com cabelos apenas aos lados de uma careca central, e de chapéu na cabeça para tapá-la. Ele usa um bigode mediano, insuficiente para esconder completamente os lábios, muitas vezes lambuzados de molho de macarrão, preparado pela esposa.
Seu nome é Davino. Davino Scalize. Um homem sério, com muitos filhos, e de um amor incomensurável por seus fiéis amigos caninos, que pela vida cuidou com muito carinho. Eles não eram sua única paixão existencial. Caminhoneiro desde a juventude, apreciava suas viagens de caminhão, a trabalho é claro. Parece que entre as estradas do Brasil, ele seguia piamente aquele velho ditado, “pra um bom viajante nenhum caminho é distante”. Gostava de viver assim, desbravando caminhos, mergulhando em muitos horizontes.

Este homem realmente era diferente. Chegava a ser meio engraçado. Sua aridez de espírito e severidade nas atitudes, não representava sinônimos de maldade. Era divertido ver alguém tão sério e rígido e fechado, quando se lambuzava inteiro, agora por uma manga madura. E melancia então? Chamava-a de “bola d’água”. E era o único ser humano na face dessa terra que conseguia acabar em pouco tempo com uma “bola d’água”, inteira e sozinho...
Parece que ele entendeu que o os sonhos se constroem. Deve ser por isso que ele, com a ajuda de seu saudoso pai, construíram com os próprios punhos sua casa onde hoje, mora sua família. E depois de acabada, fez com o dedo uma inscrição memorável, com as letras D e S, datando em cima o ano de 1954. Você conhece alguém que para obter água fresca, fez um poço profundo no próprio quintal? Ele fez.
O quintal da casa dele era um tanto grande. Depositava ali algumas de suas bugigangas, perto da jabuticabeira, que costumava receber diariamente ao seu lado a presença da velha Variante vermelha do velho. O fogão à lenha ficava mais ao fundo, perto de uma parede que sustentava em alguns pregos, uns tachos bem largos que a Zazá usava para preparar doce de abóbora e sabão.

O quarto dele é que era um verdadeiro museu. Esse homem era antigo demais. E gostava tanto de ser assim que o seu silêncio revelava isso, quando sozinho deitado em sua cama descansava com o olhar por vezes preso ao teto, às vezes na cachorra Chica, sua grande companheira.
Esse olhar era uma espécie de lâmpada. Uma vista velha, porém lúcida, que o remetia acordado aos seus pensamentos, coisas que até hoje não consegui decifrar. Ele não dormia com a esposa. Esse quarto era separado do dela. Ao lado de sua cama havia uma mesa, que suportava um radinho que vivia tocando modas de viola, e narrando jogos do XV de Jahu.
Em cima de seu guarda- roupas havia uma mala. Aquilo sim era uma velharia para mim. Ela era um mistério só. Depois de muito tempo apenas, foi que descobri coisas que ele guardava lá. Coisas como retratos, moedas antigas, documentos do começo do século passado, e outras mais. Em uma das paredes, um belo desenho de uma velha “Maria Fumaça” ao lado da estação, revelava seu grande outro amor. Os trens. Vários daqueles retratos que citei eram justamente dele, por vezes, ao lado ou comandando uma dessas máquinas locomotivas, que já são raras nos dias de hoje. Mas nos dias de Davino não.

Aliás, o apelido dele era Zé do lixo. Carinhosamente (ou nem tanto), outorgado pelos velhos amigos de trabalho. Acredita-se que algum malandro engraçadinho, colocou-lhe esse inesquecível codinome, simplesmente por ser notória sua mania de vasculhar no lixo que encontrava por ocasiões, alguma coisa que lhe fosse útil. O caso é que seu último trabalho, antes da sonhada aposentadoria, era de caminhoneiro da prefeitura, justamente no caminhão de lixo. Ou seja, quando ele tinha oportunidade, conseguia encontrar pelos lixos da cidade, coisas que considerava boas, e que ao seu ver não deveriam estar ali. Pegava tantas coisas inúteis, que iam de peças de motores de veículos até martelos sem cabo, enfim, isto fazia parte dele. E consequentemente tudo isso fez com que Zazá desistisse de uma certa organização nas coisas do Zé. Havia na verdade, um outro quartinho somente para essas suas bugigangas, e confesso que entrar ali escondido às vezes, era a diversão minha e de meu irmão. Tudo bem que isso nos custava muitas vezes uns “cróques” na cabeça, mas não ficávamos nunca com raiva do velho.
Não vou encontrar alguém como ele. Escondia dinheiro embaixo do colchão e em algumas latas, para realizar uma espécie de “economia”, e diversas foram às vezes que perdeu boas quantias, que se estragavam, enquanto ele se esquecia que tinha dinheiro guardado. E na copa do mundo? Em 1994, pendurou uma grande bandeira que ele mesmo preparara, para todos verem no telhado de sua casa. Como bom italiano, as cores vermelha, branca e verde, tremulavam ao vento, exibindo sem vergonha alguma, a palavra: “Italha”.
Do contra, resmungão, bravo, sério, mas honesto e trabalhador, esse era o Zé do lixo. Coitado do prefeito que era mal dito por ele vez por outra. Talvez o segundo mais xingado fosse o Faustão.

Como disse, ele não era um homem mal, mas alguns tristes incidentes aconteceram, que deixaram algumas pessoas muito tristes e magoadas com o velho, e que passaram a crer que ele era malvado sim.
Quando a Zazá começou a freqüentar a igreja adventista, ele não gostou muito não. E dizia que a igreja não prestava para nada, e maldizia o pastor, que sequer conhecia. Tudo começou quando um vendedor de livros religiosos visitou-lhes a residência, num dia em que o Zé não estava. A Zazá recebeu o rapaz com alegria, e a partir dessa visita ela veio a conhecer as verdades maravilhosas que até hoje ama e segue.
Quando as idas dela para a igreja tornaram-se mais intensas, o Zé começou a agredi-la além das palavras, e partiu para a agressão física. Como os filhos eram muito pequenos, o máximo que conseguiam fazer para proteger a mulher, era juntar-se todos em volta dela, para que as cordadas não pegassem nela, assim todos dividiam a mesma dor. Por esses dias, ele ainda não era tão velho, esse caso deu-se ainda em meia juventude do casal.
E ele prosseguia em suas viagens, em seu amor pelos cachorros, em seus passeios ás tardes, e em sua paquera nas ruas pelas mocinhas...
Enquanto isso, Isabel perseverava em seguir os caminhos de Jesus, que um dia aquele rapaz, como um enviado dos céus, lhe apresentara. Às vezes, ia para a igreja às escondidas, com medo de apanhar. Quando certa vez o Zé descobrira que ela estava lá, ao chegar em casa, ele já tinha um reio nas mãos para recompensá-la. E nesse dia, o velho chegou ao ponto de queimar-lhe a bíblia.
A despeito de tudo isso, Isabel confiava em Deus, e nunca deixou de orar pelo marido cruel. Passou muitos anos sem ir à igreja querida, mas nunca abandonou seus princípios, pois Deus era com ela.

Muitos anos se passaram quando o Zé já era aposentado e bem velho. Os filhos eram pais, e até seus netos eram grandes, chegou a ter uma linda dupla de bisnetos gêmeos. Foi quando pela velhice e por uma complicação de saúde, ele ficou muito doente, num leito de dor. E agora, a mesma Isabel, a velha Zazá, cuidava dele como quem cuida de um bebê indefeso.

Deus já havia tocado há uns dois anos o meu coração. E seguindo o exemplo de minha avó, entreguei minha vida ao Senhor. Mas e o Zé do lixo? Deveria morrer assim, em nossa mente condenado ao inferno, por ter feito tanta maldade a velha, pelo adultério, e por outras coisas? Foi quando resolvi unir-me a vovó e orar por ele, quem sabe fazer alguma coisa mais. Acredito que foi o Espírito Santo de Deus que me incomodou para isso. Após poucos dias de oração, entrei no quarto do velho. Ele estava lá, adoentado, fraco e aparentemente entregue à morte, pois o hospital o despedira afirmando que ele “melhoraria naturalmente”. Recordo-me que a dúvida atrapalhou-me o pensamento: Como poderia este homem alcançar a salvação nessas circunstâncias? Como, se durante a vida inteira ele amaldiçoou tudo o que ter que ver com as coisas de Deus? Como? Realmente o acusador é terrível, mas Deus prova Sua misericórdia.
Lembro-me que cheguei perguntando de suas viagens. Falei de algo que ele gostava para quem sabe entrar num assunto mais sério, e ser aceito. Com a voz fraca, em umas três frases curtas, disse-me que lhe foi incrível quando viajou milhares de quilômetros de caminhão até Belém do Pará:
- É vô, o senhor é meu herói, que aventureiro!
Ele sorriu.
- Vô, o vô gostaria de ir para o céu?
Uma lágrima despontou-lhe nos velhos olhos meio esverdeados, e respondeu com um leve aceno com a cabeça que sim.
Eu já agradecia a Deus em meu coração, enquanto o desafiei afetuosamente:
- Então, o vô quer repetir com sinceridade uma oração que eu vou dizer? Ah, e o vô só repete comigo se acreditar e aceitar no coração isso que eu vou dizer, tudo bem?
Encostei-me bem ao seu lado, peguei-lhe nas mãos, pedi que fechasse os olhos e oramos. Nunca ninguém havia visto aquele homem orar. O que se seguiu foi uma oração de confissão, de pedido de perdão, de aceitação a Jesus, e assim o Zé confessou. Confessou que aceitava para sua vida, Deus e Sua misericórdia pelo sacrifício de Jesus. Em seguida pedi a ele para que repetisse comigo, algo que ele de alguma maneira já havia ouvido:
- Vô, repete assim; “Pai nosso que estás nos céus”...
E com a voz muito fraca, mas crente, ele repetiu:
- “Pai nosso que estás nos céus...santificado seja o Teu nome...perdoe as nossas dívidas”...
E foi assim. Um milagre!
Recordei-me então de um verso que sequer sabia onde estava, mas estava...Aquele que diz que, se uma pessoa passar toda a vida servindo a Deus, e no último momento abandoná-lo, essa não terá a salvação. E que aquela que viver toda a vida sem servir a Deus, mas que o aceitar nos últimos momentos de sua vida, esta terá a salvação...
Dei-lhe um beijo na testa meio suada. Talvez o primeiro beijo que dei em meu avô...
Ele me abraçou como pôde, e confesso que seu rosto demonstrava-se outro, como quem verdadeiramente encontrara-se com o Senhor. Ele me agradeceu, e eu não pude conter as mais felizes lágrimas que já derramei. Saí do quarto com a bíblia que havia levado comigo, jubiloso e agradecido a Deus.

Assombra-me esse jeito indescritível de Deus de salvar. Sim. Gosto de pensar que em meio a tantas palavras que gosto, um certo Zé do lixo, torcedor da seleção da “Italha”, ensinou-me sem agendar comigo aula alguma. Intrigante e engraçado que Deus fez com o Zé, coisas de Zé do lixo mesmo; reaproveitando coisas que aparentemente não tinham mais valor algum!
Poucos dias depois ele adormeceu, deixando-nos com muita saudade. Mas realmente por seu testemunho, muito aprendi, nessa aula agendada por Deus. Concedendo-me assim muita alegria de saber, que no bendito dia da ressurreição, quando Jesus voltar, eu poderei reencontrar o meu avô.

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